Giovanni Bizzotto
Carlito era dono de uma ironia que o habitava vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. Era palhaço por natureza, tanto que no final da vida se especializou nesta arte: a arte de ser palhaço. Se bem que o palhaço criado por ele não tinha o foco na graça do palhaço fanfarrão que conhecemos, era um palhaço mais filosófico e trabalhava numa linha mais contestadora da hipocrisia humana. Puro contraponto com a gaiatice que pululava dentro dele e com a qual ele divertia as pessoas que amava e até as que ele não amava tanto. Sua verve cômica, bufa, farsante, ficava de plantão. Era só tocar, ficar petrificado na frente dele, puxar um fio imaginário no ar, fingir estar falando outro idioma, qualquer babaquice iniciava uma cena surreal. Nesta época, quando nos encontrávamos, eu colocava o dedo em riste na cara dele propositadamente e dizia com um ar indignado: “Tu é um palhaço, rapaz!”. Ao que ele respondia com um riso melífluo, como diria Nelson Rodrigues: “Bondade sua!”. “É palhaço!”, eu retrucava, mais possesso ainda. “O que é isso, muito obrigado!” Podíamos estar na casa de alguém, na rua ou em qualquer circunstância, se a gente não tinha nada sério pra dizer naquele momento, começava a onda: “O que é que o Sr. está fazendo por aqui uma hora dessas?”, ele perguntava com virulência. “Seu guarda, eu... eu...” “Eu, uma pinoia, rapaz. Identidade!” “Mas seu guarda...” “CPF e Título de Eleitor aqui na minha mão, agora!” “Título de Eleitor? Mas o que foi que eu fiz desta vez?” “Se não fez, tava pensando em fazer...” E por aí vai.
Eu, por conta disso, e por uma certa facilidade em simular vozes ao telefone, de vez em quando passava uns trotes pra ele. Era muito difícil pegá-lo, mas eu preparava tudo de tal maneira que não tinha jeito dele não cair. Certa vez, sabendo que ele estava esperando para receber um dinheiro da prefeitura, coincidiu de o destino me dar todos os caminhos para capturá-lo. Covardemente, é claro. Estava eu, na prefeitura, não me lembro porque, quando, por coincidência, passei pelo setor de empenho (local onde as pessoas recebem) que ficava no corredor, no andar de baixo, quando ouvi alguém gritando: “Seu Almeida (nome fictício—não me lembro o nome da pessoa, mas ela era responsável pelos pagamentos naquela época), o Sr. já fez os empenhos para os pagamentos na sexta-feira?”. Aí apareceu o Seu Almeida e começou a conversar com essa pessoa na minha frente. Foi então que eu percebi que o Seu Almeida tinha um timbre de voz que eu poderia imitar com alguma facilidade. Fiquei ali, disfarçadamente, ouvindo aquele blá-blá-blá e observando como o tal Almeida falava, suas inflexões, vocabulário e tudo mais que eu podia sugar naquele momento fugaz, prenúncio de uma excelente sacanagem. Feito o laboratório, parti pra casa cheio de maldade no coração. Pelo caminho fui rememorando a conversa que tivera com Carlito sobre esse pagamento, fui tentando lembrar os detalhes e montando o texto com o qual arriscaria enganá-lo. Ao ligar, é ele quem atende com uma voz um tanto desafiadora, parecendo saber que do outro lado estava eu, ansioso pra tirar uma onda sensacional com a cara dele.
“Alô! (desafiador, colocando em prática a minha imitação caprichada da voz do Seu Almeida, que acabara de ouvir com toda atenção do mundo.) Por favor, eu gostaria de falar com o Sr. Carlos Alberto Rodrigues Marchon?” (Falei o nome dele de batismo, tentando uma seriedade maior.) Ele, mudando um pouco a entonação, talvez percebendo tratar-se de alguém que não conhecia, respondeu: “É ele. Quem está falando?”. “É o Seu Almeida, aqui da prefeitura, do setor de empenho.” “Seu Almeida? (Perguntou com certa estranheza.) Ah, sim. Pois não, Seu Almeida.” Bingo! Ela acabara de cair na minha simulação vocal. Por ter trabalhado na prefeitura ele conhecia o Seu Almeida do setor de empenho. Era açúcar no mel. Agora ia começar o baile: “Seu Carlos, o seu cheque está aqui há mais de uma semana”. (Esculachei!) “Hã? Como assim, Seu Almeida?” “É, está aqui no empenho há mais de uma semana, é só o Sr. vir aqui com os documentos e pegá-lo.” “Ué, mas...” Ele ficara completamente sem palavras... Eu sabia que ele tinha pra receber uns mil e duzentos reais, mais ou menos, então mandei na lata: “Eu estou ligando porque imagino que o Sr. deve estar esperando receber e o cheque já está aqui desde terça-feira passada. Estou com ele aqui na minha mão: Oito mil e quinhentos reais!” (Buuummm!!!) “O quê? Oito mil e quinhentos reais?” “Sim, é o que está aqui.. Eles já adiantaram a metade, mas o Sr. não se preocupe que deve sair o restante ainda esta semana mesmo.” (Buuummm!!!) “Mas... eu... bem...” (A cabeça rodava, o chão abria e o teto surfava. Tudo ao mesmo tempo.) Ele simplesmente não sabia o que dizer. Nesse momento eu estava a ponto de explodir em gargalhadas mas procurava me conter a todo custo pra estender a sacanagem. Ele, completamente aparvalhado tenta uma confirmação: “Não, mas... qual é o valor? O Sr. pode repetir, por gentileza?”. Eu, quase roxo, segurando como podia o riso, respondi. “Oito mil e quinhentos reais, Sr. Carlos. Tô com ele aqui na minha mão. É só o Sr. trazer a identidade e o CPF e pegá-lo comigo aqui no empenho.” “Mas o Sr. tem certeza que é pra mim?” “Sim. O seu nome não Carlos Alberto Rodrigues Mar...” Explodi em gargalhadas incontidas, caso contrário morreria de enfarto...
Do outro lado, ele ria também, já imaginando quem era. “Sabia o tempo todo que era você, otário!” Eu ria mais ainda e ele também não aguentava, e ele continuava: “Só deixei rolar pra ver até onde você ia, seu mané! Deixa você comigo! Espera!”. Depois de cinco minutos de riso ininterruptos, conseguimos voltar ao normal.
Carlito sempre teve a grandeza de rir de si mesmo e era um grande amigo. Sua inteligência e talento o transformaram num dos grandes personagens da história de Nova Friburgo.
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