Maria Clara Cavalcanti
Há algum tempo vem se falando do “perigo” dos contos de fada, transformando esses contos milenares em “vilões” capazes de macular as mentes puras e inocentes das crianças, despertando nelas sentimentos ruins como inveja, ciúme, medo, que, por si só, jamais sentiriam... Será?
Minha proposta é conversarmos aqui sobre uma das mais importantes funções dos contos de fada: mostrar-nos as diferentes dimensões dos sentimentos humanos.
Hoje falaremos de desejo, este velho conhecido de todos nós.
O Aurélio define: desejar – ter vontade de, querer, apetecer, ambicionar, querer o que não possui.
Parece simples, mas não é.
É só pensarmos em quantos desejos equivocados formulamos durante nossa vida, para percebermos que, para lidar com desejos, TODO CUIDADO É POUCO!
Contos e mitos nos alertam para as armadilhas e dificuldades de desejar. Vejamos o que nos conta um velho conto popular:
Um lenhador muito pobre encontra Júpiter e esse lhe concede três desejos.
— Não quero nada — suspira o homem.
— Ora homem! — diz Júpiter — não perca esta oportunidade!
O lenhador vai para casa e diz à mulher:
— Júpiter concedeu-nos três desejos.
Ela começa a ter tantas ideias, que ele, impaciente, diz:
— Vamos pensar amanhã. Agora eu quero uma salsicha bem quentinha!
No mesmo instante, aparece diante deles uma reluzente salsicha!
A mulher, enraivecida, diz tantos desaforos ao marido que ele grita:
— Que esta salsicha fique presa no seu nariz!
Na mesma hora, a salsicha voa e gruda-se no nariz da mulher. Aí eles não têm outro jeito a não ser gastar o último desejo que lhes resta para tirá-la de lá. Foi-se a salsicha, foram-se os três desejos.
Para ele, acostumado a uma vida pobreza, a oferta de Júpiter é inusitada demais. Ele não consegue desejar além de suas necessidades. Enquanto pensa, o apetite o domina e ele acaba por desejar uma salsicha! Paralisado diante da situação inesperada, ele pede errado. Resultado: desperdiça os desejos.
Perrault registra esta história com o título de Desejos Ridículos, numa alusão ao papel ridículo feito pelo lenhador. Para ele, é mesmo uma questão de direito: o camponês jamais saberá utilizar os desejos; não é, por isso, merecedor deles.
O Aurélio diz: desejar é ter vontade de. Tivesse ele vontade, teria desejado certo?
Vejamos um mito grego:
O padrasto de Baco embebeda-se, perde-se, e é levado à presença do rei Midas. O rei o acolhe. Baco, agradecido, concede a Midas um desejo. Este, sem pestanejar, pede que tudo o que tocar vire ouro. O deus antevê problemas, mas concede o que lhe foi pedido.
Exultante, Midas vê, ao toque de suas mãos, transformarem-se em ouro, pedras e flores. Só descobre o erro que cometeu ao sentir fome. Todo o alimento em que toca transforma-se em ouro! Ele está fadado a morrer de fome! O remédio é implorar a Baco que retire dele o, agora incômodo, dom. Foi-se o toque de ouro, foi-se o desejo.
A oferta de Baco não paralisa Midas, ele sabe muito bem o que quer. No entanto... desperdiça o desejo. Ao contrário do lenhador, que resolve pensar amanhã, ele pede impensadamente. Terá ele sido menos ridículo que o lenhador? Cuidado com o que você pede, pois poderá ser atendido, diz o ditado popular.
O lenhador e Midas tomam atitudes opostas, mas acabam chegando ao mesmo resultado desastroso.
Estas histórias nos advertem: nem a ausência de desejo nem o desejo em demasia levam a lugar algum.
Há, porém, histórias que nos mostram que, se desejamos na medida certa, podemos alcançar o queremos. Cinderela, por exemplo, certamente estaria suja de cinzas e aturando os desaforos da madrasta até hoje, se não tivesse desejado e lutado para ir ao baile...
Isso é uma das funções dos contos de fada. Mostrar-nos um leque amplo de opções e nos levar à reflexão. Nesse caso, o que é desejar certo?
Semana que vem falaremos de ciúme.
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