Espaço de Leitura - Pra que serve a norma culta? - 11 a 13 de junho 2011

sexta-feira, 10 de junho de 2011
por Jornal A Voz da Serra

Nilza Rezende (*)

A questão do MEC aprovar um livro que diria (diria, porque eu não li o livro... você leu?) que é certo falar errado me coloca várias questões:

Meu filho Pedro vive me perguntando. Pra que serve estudar gramática? Pra que serve saber que esta é uma oração coordenada e esta, uma subordinativa? Pra que ter de falar certo, se você entende perfeitamente o que eu digo? Para que ter de escrever eu a vi se todo mundo diz eu vi ela? Não é a mesma coisa?

Se nos assustam “o pessoal foram, a gente vamos”, me parece, é apenas porque essas expressões são usuais na classe pobre. Porque os ricos, os aparentemente cultos, os que frequentam os cinemas, os restaurantes e vivem na ponte aérea também cometem erros pra burro! Alguns que meus ouvidos nem mais estranham: haverão outras ocasiões... eu tava meia de bobeira... entre eu e ele... ela é muito descriminada... se ele ver você... e lá vai fumaça.

Mas nada disso choca. Isso é normal, isso “todo mundo fala”! Ou seja, os ricos e poderosos podem errar à vontade. Podem usar o infinitivo pessoal no lugar de impessoal. Usar o lhe quando o objeto é direto. Não separar o vocativo. Não saber fazer concordância verbal. Pedir dois cafezes. Agente pode!

Aí, quando escutamos o outro — aquele que nos é estranho, que é marginalizado, que é excluído — “falar errado”, aí dói. Por quê? O anúncio está errado, a placa de sinalização é errada, políticos falam errado...e então? Por que só o erro do outro dói?

Será que quando se chama atenção para o erro do linguajar dos pobres, dos que não tiveram acesso ao básico do básico (o verbo concorda com o sujeito, por exemplo), estamos querendo reforçar uma incapacidade de eles (erro comum dos nobres: escrever deles, como se a preposição pudesse ser sujeito...) de assumir um lugar melhor na sociedade? Estamos reforçando a exclusão, o preconceito, a discriminação?

É preciso prestar atenção. Se o ensino da língua for valorizado, se a língua for valorizada pela sociedade, se o professor for valorizado, então, muda tudo: quem não souber a língua culta tem menos conhecimento. E conhecimento pode representar poder.

Quanto ao livro do MEC: eu não li. Você leu? Duvido que alguém tenha lido de fato o livro, tenha entendido o sentido da frase. Minha opinião: o conceito de certo e errado é perigoso, é óbvio que é. Há anos a chamada “academia” vem refutando esse conceito. O mundo vem negando isso.

Certo ou errado? Depende. Escrever chato na redação do vestibular é errado.... mas se colocar entre aspas, como exemplo de linguagem do jovem é certo... com os amigos, está ok, mas num discurso formal, não... Assim, depende. Vou excluir alguém porque concordou erradamente o verbo? Não, não vou; mas, se for para trabalhar comigo, vou...

Logo, a opção ser ou não ser aceita hoje muito mais opções. E que bom que seja assim!

Mas e aí? Isso significa que não se deve ensinar a norma culta? Claro que não. Deve. Porque haverá espaços em que só ela deve ser usada. Haverá ambientes que só ela ocupa. Haverá cargos que a exigem. Haverá situações que excluirão aqueles que não a dominarem.

Mas é este o papel da escola? Pra mim, esse é um dos papéis da escola: ensinar a norma culta. Haver não vai para o plural no sentido de existir. É vendem-se casas. Faz dois anos que não o encontro — isso é tão básico quanto ensinar que é nós não pegamos o peixe...

Mas é papel da escola também ensinar a democracia, ensinar a igualdade, ensinar a aceitar as diferenças. E ensinar a reagir contra a discriminação e a intolerância.

Era isso que o livro do MEC dizia? Não sei, eu não li. Você leu? Estou discutindo o que a questão me suscita.

E aí óbvio: vem todo mundo gritar. Gritar contra os professores. São eles os culpados. Será?

Enquanto os poderosos puderem fazer tudo — inclusive falar errado e falar mal do outro sem qualquer consequência —, enquanto o país não valorizar a educação, enquanto os professores não tiverem um salário compatível com a sua importância, enquanto a sociedade brasileira não assumir e valorizar a sua identidade,tem jeito, não: nós não vai pegar os peixe. Nem haverão outras oportunidades. Os pobri vão ficar mais pobri e os rico mais besta.

(*) - Nilza Rezende – escritora e pesquisadora

da Cátedra UNESCO de Leitura

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