Espaço de Leitura - Mais breve que o susto... - 11 a 13 de fevereiro 2012

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012
por Jornal A Voz da Serra

“Sou frágil o suficiente para uma palavra

me machucar, como sou forte o bastante

para uma palavra me ressuscitar.”

Bartolomeu Campos de Queirós

Mais breve que o susto e sem bilhete de partida, Bartolomeu, Bartô, para os que com ele conviviam, nos deixou, de madrugada do dia 16 de janeiro, “neste momento frágil em que nem mesmo a natureza se define. Instante onde a verdade e a mentira se equilibram cuidadosamente”.

“Ele era como a madrugada: perto de acordar, mas ainda cheio de sono. Era um menino feito de coragem e medo.” Assim o conhecemos, assim aprendemos a amá-lo e a admirá-lo através da sua produção literária, ou prosa poética, ou a mais pura poesia.

Tendo sua vida marcada pela solidão, sentimento que o acompanhou desde a infância, quando perdeu a mãe, sua obra memorialista, representada especialmente por Ciganos (1982), Indez (1989), Por parte de pai (1995), Ler, escrever e fazer conta de cabeça (1997) e o contundente Vermelho amargo (2011) fechando este ciclo, traduz a sua solidão.

Hoje, com discrição, sem muito alarde, o menino se foi como os ciganos, “com sua maneira milenar de estar no mundo—nascendo em cada chegada e morrendo em cada partida, sempre a perseguirem o eterno” .

A mesma naturalidade com que Bartô narrava seus passeios pelo Jardim de Luxemburgo, período de criação de sua primeira obra, O peixe e o pássaro (1974), se fazia sentir quando falava acerca da doença que o acometera ultimamente e que, aos poucos, o fragilizava mais e mais, acabando por afastá-lo de nós, agora sem retorno. Assim, referia-se às sessões de hemodiálise a que se submetia três vezes por semana, nos locais onde estivesse promovendo a leitura, e aceitava esta realidade com resignação, mantendo seu ritmo de trabalho, movido pelo compromisso que assumiu em sua experiência como escritor e arte-educador.

Nascido distante do mar, “sabia sua fragilidade escrita nas vagas, seu desvelo em coroar com espuma o desmanchar-se em areia, seu afago para com os profundos jardins de algas, seu cuidado para não descolorir os corais”. Assim como o mar que idealizava em sua fantasia, o cuidado marcou suas relações com os amigos e com os que dele se aproximavam. Com voz doce, em tom suave e pausado, sua conversa cativava e nos fazia sentir mais próximos daquele criador de histórias que podem “acontecer amanhã ou depois de amanhã, apenas no coração”.

O menino contido, que guardou entre suas lembranças o olho de vidro do avô, que com seu hábito de escrever nas paredes da casa todos os acontecimentos da pequena cidade em que moravam, despertou o leitor apaixonado e o escritor sensível que se escondia naquele pequeno coração, compartilhou essa experiência com todos aqueles que, como ele, acreditavam ser possível criar uma sociedade leitora.

Participando das ações do Proler (1992-1996), Bartô viajou por todo o Brasil em caravanas promovidas pelo programa e levou sua experiência aos mais distantes rincões, fazendo palestras que mobilizavam plateias pela coerência e compromisso irrestrito com a leitura, acreditando, como aprendeu com o avô, que “leitura era coisa séria e escrever, mais ainda” .

Esta talvez seja uma das dimensões mais importantes da obra de Bartô, entender a leitura como uma coisa séria, ou seja, como uma questão política, por se configurar como condição primordial para o acesso à cidadania. Com a mesma poesia e sensibilidade que perpassa toda a sua obra, a leitura é tratada nessa dimensão em livros como Correspondência (1986), Apontamentos (1990), Onde tem bruxa tem fada (1979), atingindo seu ápice em De não em não (1998), onde a Fome que devora os miseráveis é a principal personagem. Com o mesmo lirismo e poesia que marcam toda a sua produção literária, o escritor faz, através dessa obra, uma crítica contundente a um sistema que exclui do direito à vida parte significativa da população, ainda na infância.

Escritor completo, Bartolomeu Campos de Queirós nos deixa uma obra relevante, que atinge todas as faixas etárias, e nos lega a responsabilidade de continuar seu trabalho, perseguindo sem descanso o sonho de transformar o país através da leitura

Stella de Moraes Pellegrini

(Autora de Caminhos e Encruzilhadas. Os percursos poético e político de Bartolomeu Campos de Queirós da formação do leitor à formação de leitores. Belo Horizonte, MG: RHJ, 2005.)

CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
TAGS:
Publicidade