Espaço de Leitura - Joio do trigo - 4 a 6 de junho 2011

sexta-feira, 03 de junho de 2011
por Jornal A Voz da Serra

Maria Clara Cavalcanti

No século XVII, período de profundas mudanças sociais, caiu como uma bomba na Itália o livro Il Pentameron, de Giambattista Basile.

O livro, um conjunto de contos populares recolhidos junto a camponeses napolitanos, é narrado em uma linguagem tão franca, que poucos perceberam a grandeza da obra, hoje considerada um dos mais belos livros do período barroco.

Vejamos abaixo um resumo de Sole, Luna e Tália, um dos 50 contos do Il Pentameron.

Quando a princesa Tália nasceu, foi profetizado que morreria devido a uma farpa de linho. Seu pai proíbe a entrada de linho em seu reino. Um dia, ela vê uma velha fiando, aproxima-se, e uma farpa entra sob sua unha. Imediatamente ela cai morta. Anos depois, um rei vê Tália dormindo, coabita com ela e parte. Nove meses depois ela, ainda dormindo, dá à luz a duas crianças. Um dia, um dos bebês coloca o dedo da mãe na boca, extrai a farpa e ela desperta. O rei volta para revê-la e a encontra acordada cuidando dos filhos. Ele não pode levá-los para seu castelo pois é casado, mas sempre que pode, vem visitá-los. Sua mulher descobre e manda buscar as crianças para comê-las, mas um criado as salva. Mais tarde, a rainha manda buscar Tália com planos de jogá-la dentro de uma fogueira, mas o rei chega a tempo de salvá-la e joga a rainha em seu lugar. A história termina com o casamento dos dois.

Antes de nos chocarmos com esta Bela Adormecida tão diferente da que conhecemos, proponho um passeio à época em que ela foi contada.

Até o final da Idade Média, as culturas tradicionais de um país eram compartilhadas por toda a população. As pessoas existiam, apenas, enquanto comunidade.

A Renascença, no século XVI, impôs novos modelos que acabam por separar as classes. No afã de separar o joio do trigo, inicia-se a caça às bruxas, visando separar a elite do povo, fortalecendo a primeira e purificando o segundo.

Os contos populares, verdadeiras crônicas do homem comum, falando abertamente dos desejos humanos, passam a ser vistos como uma ameaça aos bons costumes.

Daí podermos ver o quanto Basile incomodou a sociedade publicando estes contos exatamente como eram contados pelo povo.

Ignorado ou não, o fato é que Il Pentameron serviu de base para que, cerca de sessenta anos mais tarde na França, Charles Perrault incluísse em seu livro Contes de Ma Mére l’Oye, o conto La Belle au bois dormant, visivelmente inspirado no conto de Basile. Porém, imbuído em seu papel de cortesão, Perrault faz as substituições necessárias para adequá-lo aos salões da corte.

Retira do conto o adultério. O desejo de comer as crianças permanece, mas uma rainha-ogre substitui a mulher traída.

No século XIX, quando a criança passa a ser vista como um ser com o qual se deve ter cuidados especiais e surge a preocupação com sua formação moral, os irmãos Grimm publicam uma coletânea que reúne mais de 300 contos entre eles, Rosinha dos Espinhos.

Seguindo a mesma estrutura dos contos de Perrault e Basile, os Grimm retiram os elementos mais agressivos. Nota-se a preocupação em suavizar a narrativa, já agora dirigida ao público infantil.

O estupro e a gravidez da princesa adormecida e o desejo da sogra de comer as crianças desaparecem. Tudo o que é dito é que um príncipe passando pela floresta vê um palácio, entra, e ao encontrar uma jovem adormecida, a acorda com um beijo. Comemora-se em seguida o casamento e os dois podem, enfim, ser felizes para sempre.

Acompanhamos aqui as mudanças na forma de abordar o desejo sexual no conto da Bela Adormecida ao longo dos séculos e vimos o quanto a tentativa de separar “o joio do trigo” foi adequando o conto aos modelos sociais vigentes. De um rei que trai a mulher com uma princesa adormecida, passamos por um príncipe que engravida a moça antes do casamento, até chegarmos ao casal que se une oficialmente, sem qualquer insinuação de sexo ilícito.

Porém, não podemos nos esquecer que joio é uma erva que surge espontaneamente no meio do trigal. Assim é que, ainda hoje, encontramos versões que preservam alguns elementos dos três contos. Tanto Câmara Cascudo em A princesa que dormia, quanto Teófilo Braga em A saia de esquilhas, conservam o desejo da sogra de comer os netos. Já Silvio Romero, em O rei caçador, não só nos traz de volta o príncipe que trai a mulher, desta vez com uma princesa bem acordada, como nomeia as crianças de Sol e Lua, exatamente como no conto napolitano.

Podemos considerar o conto de Basile como um diamante bruto que foi primeiramente lapidado por Perrault e que vem sendo polido através dos séculos.

CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
TAGS:
Publicidade