Maria Madureira
Durante os dias de semana caminho pelas ruas do bairro para fazer exercício. Muita poluição, muito trânsito, muita gente a caminho do trabalho, um frenesi de ônibus entrando e saindo dos pontos, mas lá vou eu, único jeito de cumprir as determinações médicas de me exercitar. Claro que nos fins de semana, com mais tempo, procuro os parques, as pistas próprias para um exercício mais saudável ao ar livre, tantos que existem nessa cidade tão linda onde moro.
Assim às sete da manhã perambulo com passo firme, quase correndo, faço zigue-zague pelas ruas por cerca de quarenta minutos, evitando os sinais fechados que me interrompam o caminhar e especialmente a multidão de carros que fecha os cruzamentos e sobe nas calçadas para deixar meninos e meninas pelas dezenas de escolas do bairro. Além dos carros, inúmeros pais carregam seus filhos no colo, em carrinhos ou pela mão até a porta da escola. Os mais velhos chegam sós, descem dos ônibus num burburinho de vozes adolescentes, trocando mensagens por celulares, contando as novidades, parando na porta para fazer confidências ou ainda nas esquinas para um suco e um pão de queijo antes da aula que, certo, já vai começar.
Nessa caminhada, apesar de meu pensamento viajar acelerado pensando na vida, nas questões do trabalho e soluções para algum problema familiar, as cenas que envolvem os escolares me provocam a imaginação e são minha diversão predileta. Apesar do passo apressado, escuto trechos de conversas, pedaços de histórias, sons diversos sobre uma tal professora, a amiga que senta ao lado na sala de aula, fragmentos de brigas e desentendimentos entre turmas que vão passando como se eu ouvisse apenas pedaço de um programa de rádio.
Muitas imagens que vão passando rápido por mim como num trecho de filme que não vou ver o final vão ficando na memória a me instigar a vontade de completar a cena, de entender o fim da história. Vou adiante, não posso parar, tenho que cumprir meu destino de chegar a lugar nenhum, mas de circular apressada, por um tempo razoável, para fazer o corpo trabalhar melhor, dizem os médicos. Depois é correr para casa, tomar um banho e ir trabalhar.
Dos muitos trechos de histórias ouvidos e das cenas assistidas, vou fazendo leituras possíveis, olhando o que acontece a minha volta, compondo meu jeito de ler a vida e interpretar o mundo. E é o mundo da escola que me move nessas manhãs e me comove ao longo da minha vida de educadora.
Dia desses, numa dessas transversais do bairro de trânsito intenso, passo por um menininho de uniforme, escondido atrás de uma árvore a espreitar com olhar curioso por alguma coisa, mas na saudável correria não posso esperar o desfecho daquela cena e vou adiante. Na minha cabeça, no entanto, a imagem ficou e o desejo de entender de quem ou de quê aquela figurinha se escondia.
No dia seguinte ao chegar numa loja de conserto de roupas a proprietária me disse:
— Vi você na rua da Matriz.
— Eu? Tem certeza, respondi?
— Era você sim que ficou curiosa olhando meu filho se escondendo num canteiro atrás de uma árvore.
Claro que na mesma hora me lembrei da cena. E aí a história imaginada, até então, ganhou outros contornos, virou realidade e passou a ter concretude. Ela me explicou que aquele era um exercício matinal, cotidiano de levar com bom humor o Lucas à escola. “Na frente segue a avó com ele e mais atrás vou eu me esgueirando atrás de carro, de árvore, brincando de esconde-esconde, único jeito do menino chegar sem lágrimas no portão da escola nesse primeiro ano de jardim de infância.” Rimos da coincidência, falamos sobre o bairro, peguei a blusa consertada e fui para casa pensando de novo no Lucas que não quer ir à escola. Fiquei a me perguntar da escola indesejada, de uma possível oposição escola x prazer e o que movia aquela graça de menino a não querer chegar ao portão de sua escola.
Lembrei que como Lucas, na infância em Friburgo, algumas vezes, fui à escola obrigada, quase que arrastada pelas mãos firmes de minha mãe, especialmente em dias de prova da tal da matemática. Mesmo assim a farra de encontrar a turma, de querer saber das novidades sobre o fim de semana de minha melhor amiga, ou ainda a possibilidade de encontrar o garoto bonito que sentava na fila ao lado, superavam os medos, os castigos e até as notas baixas, sempre uma ameaça, em se tratando daquela matéria que foi para mim um desafio da vida inteira.
Nas caminhadas matinais ainda não reencontrei o Lucas, naquele seu exercício difícil de crescer e se entender com a escola, como demais meninos e meninas que vejo todo dia adentrando os portões das escolas de meu bairro já sem assombro ou medo, quase donos do lugar. Vontade de encontrá-lo para dizer: vai passar Lucas, vai passar!
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