Espaço de Leitura - Ester e as três mortes de sua mãe cega

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sexta-feira, 24 de agosto de 2012
por Jornal A Voz da Serra

Para meu pai, que viveu e me contou esta história.

E para Gilda e Maria Clara, que me fizeram escrevê-la

O lugar não era cidade, nem vila, nem fazenda. O sertão devia ser mais vazio do que este que conheci, embora, com certeza absoluta, houvesse mais nome para chamar, além de garrancho, jurema, mandacaru e juazeiro. A chuva apagava tudo. A pouca gente, se não fosse o instinto, não teria como chegar. Naquela noite minha bisavó, Maria José, velha, viúva e cega, caiu. Estava morta. Tinha cumprido a missão de passar os últimos dias na casa do filho, o meu avô, José David.

O luxo na casa era aquela mesa grande onde minha avó, Conceição, passava a rede por baixo do corpo da sogra fria. Os onze filhos ainda não tinham nascido. Fazia tudo sozinha, embora meu pai e algumas tias já, ali, andassem, mas sem grande valia. Meninos pequenos. Puxou o banco. Acendeu a vela e a agarrou na mão daquela que já não estava. Era pra iluminar o caminho. Era pra esperar o padre.

De manhã, chegaram tios, primos, netos. Em volta, tudo lama. Menos Ester. Essa, ainda conheci: velha, triste e maledicente. Mas, naquele dia, Ester, dizem: moça, alva, cabelo encarnado e olho azul de céu limpo. Desapeou do cavalo. Abriu entre os curiosos. Agarrou-se, encharcada, ao corpo da mãe. O marido de longe via.

Dona Maria José abriu os dois olhos cegos. Atirou a vela quente que lhe queimava as mãos nas pernas de alguém que já corria longe. Completamente cega não entendeu. Não soube talvez. Toda gente reunida. Velório. Pavor. Quem estava ali?

— Conceição, sinto fome... Conceição?

Desta vez, o lugar ainda não era cidade, mas era distrito. Meu pai correu pra ajudar a mãe a deitar a avó cega e fria. Estava morta, sim. Meu avô com onze filhos completos. A gente já não era tão pouca. Era preciso avisar. Tios, primos, compadres, agregados. Serviram café e cachaça. O caixão chinfrim forrado por um pano roxo, chegou pelas mãos de um político qualquer. Ester, dizem, fretou um jipe. Coberta de poeira, alva, olho azul daquele tempo sem chuva, cabelo encarnado. Mau agouro. Não tinha filhos. Marido por ali, por acolá. Faltava o padre pra tocar o enterro. Mas, os olhos cegos da mãe abriram-se pela segunda vez.

— Conceição — chamou Ester, enquanto o velório virava uma grande confraternização —, sei que sou sua única cunhada que não tem filhos, mas sou a que mora mais longe... Então, eu peço a você e ao meu irmão que só me chamem agora quando a mãe morrer de verdade, entendeu?

Hoje, enquanto tentava contar esta história, falaram-me que a morte tolera ser enganada apenas duas vezes. Nunca soube de ninguém que tenha enganado uma, imagine duas! Foi então que atinei pra sorte que teve essa minha bisavó Maria José que nem conheci. Talvez fosse muito esperta, já que era cega. O que teria feito para atravessar aquele caminho aos tropeços? Teria recebido a ajuda do marido, meu bisavô, que carregava uma mala de couro cheia de bonecos, fantasias, desenhos e versos? Teria acertado algum adivinha?

Da terceira vez, foram três dias. Café. Bolo. Cachaça. Boi na brasa. Meu pai entre os irmãos seguia as instruções de meu avô. Cada um faria revezamento até o caminho do cemitério. Ester nem teve tempo de jogar uma rosa que fosse. Soube da terceira morte definitiva da mãe por outros. Sem filhos. Sem marido. De longe, percebeu ainda um detalhe antes de ir embora, invisível. Finalmente, o caixão da mãe era de madeira.

Carmélia Aragão é escritora. Atualmente faz doutorado em Literatura na PUC-Rio. Assim como sua bisavó, Maria José espera também poder enganar a Dona Morte. Contato: carmelia.aragao@gmail.com

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