Maria Madureira
Quem tem mais de 50 anos com certeza leu ou já ouviu falar dos romances de M. Delly. Minha mãe tinha uma grande coleção de livros da “Biblioteca das Moças” que reunia esse e outros autores de romances adocicados, com príncipes, duques e mocinhas indefesas que viravam lindas marquesas e que no fim eram felizes para sempre.
A primeira vez que vi a coleção eu era ainda bem pequena e aqueles livros, todos de capa verde, guardados num móvel de portas largas e escuras na sala de estar da casa de minha avó, me provocaram certa curiosidade. O móvel em si me dava um certo medo e aquelas portas pareciam inacessíveis para mim. Quando abertas, no entanto, as lombadas dos livros bem arrumadinhas, com títulos um tanto melosos e misteriosos, com capas cheias de jardins e lindas paisagens, pareciam saltar das prateleiras a me provocar e a me convidar.
Depois, com o tempo, não sei bem como e por que, eles reapareceram em uma estante na sala de minha casa. A estante já não tinha portas e foi minha mãe, ávida leitora, quem escolheu e me apresentou ao primeiro romance de M. Delly. “Escrava ou Rainha?” era o título daquele que seria a minha introdução ao mundo do conto de fadas, um universo da aristocracia europeia, cheio de romance e fantasia, sem grandes compromissos com questionamentos socioculturais e bem diferentes da realidade brasileira.
Depois foi uma sequência de títulos que me arrastou pelo mundo da imaginação, entre reis, rainhas e moças pobres, madrastas malvadas e rapazes galantes que vinham salvar as mocinhas solitárias: Um Sonho que Viveu, Magali, Ondina de Capdeuilles, Corações Inimigos, A Vingança de Ralph, O Fim de uma Valquíria, fizeram minhas tardes e noites mais coloridas e doces.
Havia outros autores na tal Biblioteca das Moças, mas M. Delly ficou sendo meu autor favorito, aquele que mais fazia minha imaginação voar. Minha curiosidade pelo autor também era grande. Ficava imaginando de onde saíam tantos duques e duquesas, tantas “gatas borralheiras” e sogras perversas!
Depois de muito tempo, muito mesmo, fui descobrir que até o autor era uma fantasia. Descobri que não era um, mas dois autores, um casal de irmãos franceses que acabaram por povoar minha fantasia de menina do interior com seus personagens de capa e espada! Por curiosidade apurei que essa coleção foi editada pela Companhia Editora Nacional entre os anos de 1920 a 1960 e chegou a lançar 180 títulos, dos quais os irmãos que tinham o pseudônimo de M. Delly eram os que mais detinham títulos ali. Parece que a coleção foi feita para as moças no início dos anos 1920 que começavam a frequentar as livrarias e a fazer suas próprias escolhas. Traduzidos por diferentes escritores brasileiros como Monteiro Lobato e até Jorge Amado, segundo minhas rápidas pesquisas, alguns títulos chegaram a ter 20 edições, com tiragens bem grandes.
Só sei que não foram os clássicos, nem os autores nacionais que me atraíram para os livros e não me envergonho disso e de dizer que aquela coleção verdinha cravada na estante de minha casa marcou minha condição de leitora, abriu as portas para um gostar de ler sem preconceito, me permitindo aprender e conhecer, de bom grado, outros estilos e formas de escrita.
Minha mãe devorava livros sem pudor e lia de tudo um pouco. Lia romances de todo tipo, nacionais e estrangeiros, ficção, contos, desde os muitos romances de Jorge Amado às muitas histórias policiais de Agatha Christie. Na cabeceira de sua cama havia sempre um livro com um marcador de página, sinalizando o ponto de sua leitura a ser continuada mais tarde, numa hora de folga. Nas prateleiras da estante cabiam muitos estilos e sem qualquer constrangimento eram estampados com suas lombadas à mostra. Claro que alguns ela escondia com capas sobrepostas à original (ou não seria minha mãe!) porque entendia que não eram apropriados para minha idade, mas eram poucos e quase sempre, ainda assim estavam ali na estante provocando minha curiosidade ou testando meu ainda desinteresse.
Com seu exemplo aprendi que podia ganhar o mundo pela imaginação, por intermédio do livro, pela palavra. Podia ler de tudo, gostar ou não dos autores nacionais consagrados ou ainda dos “best sellers” que frequentavam as nossas prateleiras. Daqueles livros melosos, passei para outros da literatura brasileira, alguns obrigatórios, escolhidos pela escola ou ainda disponibilizados por minha irmã mais velha, outra rata de bibliotecas.
Hoje vejo minha sobrinha escolhendo outro gênero de livro nas estantes. Não são mais as mocinhas indefesas, nem os príncipes encantados que povoam suas tardes de leitura. Adora ler, aprendeu a gostar do livro como eu, a partir das prateleiras de livros de sua casa, com as sugestões das irmãs e tias, e muito a partir de sua própria curiosidade e interesse. De todo modo, nos balcões das livrarias ela é dona do mundo, tem gosto e estilo próprios que às vezes até me arrepiam, mas sigo em frente porque, como eu, ali há uma leitora para sempre!
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