Francisco Gregório Filho
Fui ao teatro. Assisti ao espetáculo “Calango* deu! Os causos de Dona Zaninha”. Belo trabalho cênico. Texto e atuação de Suzana Nascimento e direção de Isaac Bernat.
A encenação mostra narrativas sobre um Brasil profundo que se reinaugura em cada contexto, em seus traços antropológicos e em seu ordenamento social e cultural.
Suzana é mineira da Zona da Mata e faz um mergulho recortando uma Minas Gerais singular, desenhada com gestos dos homens e mulheres moradores e trabalhadores das pequenas cidades daquela região brasileira de feições tão humanas e representativas das diversas maneiras do pensar e fazer para tocar a vida dura de viver com poesia e solidariedade. Com forte presença em cena, Suzana consegue nos envolver como partícipe desse universo ora pleno de afeto, ora estranho e perverso do comportamento, ou ora ainda no entendimento de um mundo autoral e ricamente inaugural.
A Suzana narradora interage com a plateia como se estivesse em um dos quintais daquelas moradias das Gerais, preparando um café quente e cheiroso que imediatamente é compartilhado com o público que também já está ali disponível para o jogo proposto pela encenação. Também reza, canta, responde às adivinhações, repete as parlendas, ri, com o inusitado nas circunstâncias enfrentadas pelos personagens, chora comovida com as astúcias e o conformismo de determinados olhares e atitudes de mulheres e homens na sua complexidade da condição humana.
Suzana na verdade nos convida para observarmos a beleza de estarmos vivos e convivendo com as riquezas culturais de nossos lugares, além do privilégio de considerarmos as “sabências” de nossos avoengos—terreno de intensa compaixão com nossos ancestrais.
O programa da peça abre assim com texto da autora:
Calango deu! Calango dá!
Tico-tico jogou pedra no gogó do sabiá.
A minha mãe disse que eu parasse de cantar
que cantar puxa pro peito, e o peito pode rebentar.
E com o peito rebentado eu não posso mais cantar.
Eu vou lhe contar um causo que ocê vai se admirar...
No dia em que ouvi meu pai, seu José Mesquita, cantando esse calango, foi o meu peito que ficou apertado e eu descobri que teria que falar disso. Comecei a me cardiovasculhar. Foi um processo de escavar, alumiar sabências acumuladas por aqueles que me formaram e desenredar um tanto de lembranças. E assim, pelo prisma da arte, me ocupei das tarefas de talhar, costurar, inventar, compor e compartilhar o tesouro encontrado.
Aprendi no percurso que “quando um velho morre, uma biblioteca se incendeia” e pensei: meu Deus, como não fiz isso antes? Como eu deixei meu avô Francisco partir sem eu ter passado mais e mais horas ouvindo suas histórias ou aprendendo a jogar Malha com ele? Só me restou continuar. ”
Meus amigos leitores, com o consentimento de vocês recomendo aqui esse belo trabalho de Suzana a quem conheci, faz uns 10 anos pelo menos, quando ela trabalhava em um Centro Cultural do Rio de Janeiro e com sua turma foi participar de uma oficina que eu ministrava na ocasião. De lá para cá bom tempo passou e fico feliz em ver que o trabalho dessa atriz/autora cresceu. Receber o convite para a estreia do “Calando deu” me deixou emocionado, com direito até a uma homenagem que me fez. Reencontrei uma Suzana desenvolta em sua maneira de narrar e contar histórias e que ainda é tocadora de pandeiro e de instrumentos de corda. Encerra o espetáculo com um comovente solo de bandolim onde nos faz refletir sobre o tempo, um tempo de fruição.
Para concluir nossa conversa deste sábado registro aqui ainda o depoimento do diretor da peça Isaac Bernat que creio bem se encaixa nesse nosso diálogo:
“O ato de contar histórias é um ritual que nos mantém humanos. Calango Deu quer encantar a todos com a força desta palavra que faz parte de uma corrente interminável que vem de muito longe até desembarcar em nossos ouvidos. Que o talento e brilho desta grande artista que é Suzana Nascimento clareiem o olhar de todos que vierem conhecer os causos de Dona Zaninha. E que essa peça possibilite um verdadeiro encontro toda noite, pois como diria meu pai Sotigui: “tudo pode nos dividir, só a sensibilidade nos aproxima”.
*Suzana informa que Calango é um gênero poético-musical do interior, cantado em rimas improvisadas ou decoradas, carregadas de humor. E em Minas tem calango para mais de metro, cantado e dançado. Calango Deu é uma forma de iniciar um calango, assim como o “era uma vez” nas histórias.
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