Espaço de Leitura - As Personagens Itinerantes

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sexta-feira, 22 de março de 2013
por Jornal A Voz da Serra

“Do silêncio da história se aproveita com vantagem a poesia; e a imaginação suppre optimamente todas as omissões”.
Gonçalves de Magalhães

Francisco Gregório Filho

Nilmara é empregada doméstica—mensalista—, trabalha para uma família classe média. Alfabetizada, sabe ler algumas frases e assinar o nome. Exerce seu ofício há quase trinta anos. Viúva, prestes a se aposentar. Banqueteira de primeira linha. Teve dois filhos, um casal. Ailton, o mais velho, faleceu o ano passado de cirrose. Adilvana, a moça, estudou até concluir o 2º grau.
Ailton desenvolvia as atividades de serviços gerais. Conseguia seus biscates. O coitado extraviava o que ganhava, bebia muito, vivia de porre, alcoólatra. Conseguiu uma parceira, hoje viúva, e com ela tivera cinco filhos, um menino e quatro meninas. Meninas já agora moçoilas e uma delas ganhou uma criança, primeira bisneta de Nilmara.
Adilvana é diarista, trabalha limpando as casas de famílias conhecidas, recebe por dia, fatura mais que a mãe. Casou e tem quatro filhos, dois meninos e duas meninas, adolescentes. Estudam matriculados em pequenas escolas particulares. O marido de Adilvana se chama Joel e é funcionário de um grande supermercado. 
Nilmara continua morando em casa própria no bairro de periferia da cidade, tem um novo namorado/parceiro que vive doente e cria uma neta, filha mais nova do filho que morreu. Reclama de dores na coluna e de “problemas nos sistema nervoso”. Toma remédios e não bebe. Mantém com a ajuda do companheiro e da neta um pequeno negócio tipo quitanda/botequim. Nas horas extras prepara ótimos caldos e tira-gostos, verdadeiros quitutes.
Outro comércio informal desenvolvido pelas mulheres da família—Nilmara a bisavó, Adilvana a filha e a Aldicéia a neta mais velha—é o da livraria ambulante. A iniciativa aconteceu de uma maneira quase que natural. É que essas mulheres trabalhadoras domésticas ganharam das famílias para quem trabalharam durante muitos anos, livros. Chamam de livros usados. Guardaram todos eles e formaram um grande acervo. Para alguns dedicaram alguma atenção ou passaram a vista. São livros de literatura, romances, poesias, crônicas e contos de autores brasileiros e estrangeiros. Resolveram um dia diante de proposta da neta, saírem todas a visitar as casas dos conhecidos que moravam nos bairros da periferia da cidade a oferecer os “livros usados”. Criaram então uma livraria a domicílio. Com preços módicos e negociáveis, diminuíram em muito os exemplares do acervo organizado que renderam um dinheirinho para ajudar a neta Aldicéia a cuidar da bisneta Aldilene. A freguesia cresceu e as mulheres conseguiram mais livros usados que carregam em grandes sacolas colocadas com jeitinho nas garupas de suas bicicletas. Uma livraria itinerante—e que anda atrás do leitor.
Amigos leitores, soube da experiência exitosa por uma amiga, então pedi se podia acompanhá-las numas dessas caminhadas com a “livraria” de livros usados. Conquistei o desejado e fui com elas fazer as vendas por entre as ruelas de um bairro.
Em um dia de bons negócios, venderam quinze livros com preços que variavam entre R$ 5,00 e R$ 12,00 cada. O que gostaria de revelar aqui a vocês foi o que mais me chamou a atenção nessa empreitada. Os moradores das casas não conheciam os livros e muito menos os autores deles. Então, Aldicéia, que estuda o 2º grau, lia em voz alta alguns trechos dos livros e as pessoas escolhiam o que comprar após ouvirem as pequenas leituras da vendedora.
Não sei, tenho cá minhas dúvidas, se todos os compradores lerão os livros depois, mas importa muito a mim, ter presenciado esses instantes de contato dos ouvintes com aquela voz lendo um trecho do texto.
Nas paradas que fazíamos nas casas que nos abriam as portas e nos acolheriam tomamos muitos copos d’água e até cafezinho que nos ofereceram. Também ouvimos muitas histórias boas, comoventes. Nesse dia, em uma das leituras articuladas por uma voz jovial, macia e desenvolta ouvi trecho do poema Dedicatória, de Mário Quintana, lido pela corajosa vendedora Aldicéia, de maneira tão pausada, que as palavras ficaram repercutindo em mim intensamente e me fizeram escolher o livro e adquiri-lo. Compartilho aqui com os amigos aquele poema: 
Quem foi que disse que eu escrevo para as elites? / Quem foi que disse que eu escrevo para o bas-fond? / Eu escrevo para a Maria Todo o Dia./ Eu escrevo para o João Cara de Pão. / Para você, que está com este jornal na mão… / E de súbito descobre que a única novidade é a poesia, / O resto não passa de crônica policial-social-política. / E os jornais sempre proclamam que a “a situação é crítica”! / Mas eu escrevo é para o João e a Maria, / Que quase sempre estão em situação crítica! / E por isso as minhas palavras são quotidianas como o pão nosso de cada dia / E a minha poesia é natural e simples como a água bebida na concha da mão.*
*Antologia Poética, de Mário Quintana. Coleção L&PM Pocket, volume 71. Editora L&PM, Porto Alegre, RS, 2003. Página 136.

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