Para o escritor João Guimarães Rosa, autor de Grande Sertão: Veredas, a linguagem devia ser reacionária, desevolutiva, capaz de caminhar para trás com a destreza dos que sabem pra onde vão – ainda que não se tenha certeza nenhuma neste caminho. Mas a linguagem devia se situar, sem se acomodar, a linguagem que é um vírus, como dizia o americano William Burroughs, devia se perverter, se estender para além de todos os limites, fora do tempo e do espaço, capaz de cuidar de cada bloco, cada vírgula, cada sentença com o peso que ela deve ter.
É esse peso, essa consciência da própria mutabilidade que encontramos no texto do escritor friburguense Antônio Rosalvo Ribeiro Accioly, o Lula, como também é conhecido. Sua prosa, carregada do lirismo rude da roça, expõe o poético entre causos onde horror, violência, amor, simplicidade, tragédias, belezas e acentuações ganham estilo, voz e recordações. Num mundo afora, distante do progresso, com sons que se encontram entre folhas de bananeiras, o texto de Accioly é capaz de vitimar o leitor; pitoresco, ele redescobre o caboclo de cada um de nós, dialoga com a natureza e comunga com a inocência, a simplicidade e os embrutecimentos do interior, que é cada vez mais para dentro, fora das estradas e perdido na própria alma.
Carioca, radicado desde muito cedo em Nova Friburgo, Lula é um premiado poeta, membro da Academia Friburguense de Letras e apaixonado pela terra e por suas lendas. Lula tem a seu favor “a verve do escritor de talento, que combina o estilo à narrativa, à situação, que se faz igual aos personagens”, como declarou Milton Moreira do Nascimento, na orelha do livro de contos O assombro de Duca Lourenço.
Poeta de grande valor, Lula também foi reconhecido pelos amigos do Grupo de Arte, Movimento e Ação (Gama), que usarão sua obra como base para um dos dez CDs da Reunião Poética, uma coletânea de textos gravados a ser lançado em setembro, no aniversário do Gama. Os poemas de Lula ganharam vida através da voz do ator e jornalista Paulo Carvalho e já estão entre os lançamentos mais aguardados do ano.
Agora Lula embarca para a cidade de Maringá, no Paraná, onde foi premiado com o poema “Por cima dos ombros da tarde”, no IV Concurso Literário Cidade de Maringá. A premiação acontece no próximo dia 19, durante o IV Encontro das Academias de Letras do Paraná.
Por cima dos ombros da tarde
Roberto Accioly
Pelos ombros da tarde
o sol espia.
Seu olho de luz penetra no silêncio do paiol.
Entre o murmúrio do córrego,
e o murmúrio do beija-flor,
ouve-se o troar-troando do velho cocão
das rodas do carro de boi.
Pai e filho debulham o corpo do milho.
O avô varre o terreiro,
da sua boca voam duas borboletas amarelas,
e ele diz: “Minhas unhas têm o pretume do chão da terra.”
Das encostas das vertentes
o vento do sul sopra,
e o seu sopro invade as asas das andorinhas.
“O vento sul é frio.” Diz a avó,
ajeitando um pau de candeia na boca do fogão.
A água do café ferve,
e ela oferece um gole ao avô – que bebe –
espiando pelos seus olhos velhos
o contorno branco das nuvens que povoam o céu.
No coração da macega,
a jaracuçu brejeira desdobra seu corpo de cobra,
e escorre silenciosa pela moita do napiê.
“Tiê-tiê!” Grita o tiê.
“Qui é! Qui é!”
Responde o gavião pinhé.
Pelos ombros da tarde,
a luz sangra seu último sol,
e o bacurau abre seus olhos de estrelas.
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