Maurício Siaines
Maria Bercília Mozzer de Morais, nascida em 1943, é bastante conhecida em Lumiar. Participante ativa da Ação Rural de São Sebastião de Lumiar, foi também diretora de diversas escolas públicas da região. É filha de Astrogildo Mozer, um dos patriarcas mais respeitados na localidade, que se mudou com a família de Macabu, município de Trajano de Morais, para Lumiar, em 1954, com o objetivo de permitir que seus filhos pudessem se beneficiar da ação de Maria Mouta, educadora que marcou época.
Bercília conversou com A VOZ DA SERRA, num sábado, dia 18 de dezembro, em meio a grande alvoroço que dominava a Vila Mozer, onde mora. Preparava-se o almoço comunitário, que normalmente acontece todos os domingos, mas que haveria também naquele sábado, como uma espécie de preliminar da grande festa que agitaria a noite, em comemoração do 80º aniversário de José Schuawlb, tio de Bercília, outra figura querida e reverenciada, participante do grupo dos Sanfoneiros da Serra.
O ambiente compunha o clima da entrevista e permitia que, volta e meia, a entrevistada consultasse alguém a fim de confirmar alguma informação, como, por exemplo, lembrar exatamente uma data, que sempre se associava a algum nascimento ou outro evento da vida comunitária. Naquele local em que a tradição está mais que evidente, a conversa fluiu e abaixo fica o registro.
AVOZ DA SERRA – Você se dá conta do quanto é original a vida social que vocês desenvolvem aqui, na Vila Mozer?
Bercília Mozzer – Eu acho que tudo aqui é original, os ensinamentos, a maneira de meu pai viver, ele era uma pessoa muito alegre, nunca gostou de tristeza. E sempre ele falava: “eu quero a união da minha família”. Isso ele nunca esqueceu de falar. E sempre que a gente se reunia e ficava todo mundo junto, para ele era uma alegria imensa. E sempre ele repetia essas mesmas palavras. O que existe aqui foi uma coisa que meu pai plantou e que a muda cresceu, esse espírito de colaboração, de união, de trabalho, de responsabilidade, de fidelidade. Ele era muito correto. Tinha muito respeito pelos filhos. Ele deixou também um lema: “obrigação, devoção e diversão”. Ele jamais deixaria a gente ir ao campo de futebol torcer, sem antes ir à igreja.
Antigamente, o almoço era às 9h30, 10h. A gente almoçava e ao meio-dia era a ladainha em Lumiar. Naquela época, Lumiar nem era paróquia e o padre vinha duas vezes por ano, mas todo domingo, ao meio-dia, tinha a ladainha. A gente rezava, ajudava a coordenar a oração e, depois, voltava para casa. Aí mamãe fazia aquele bolinho de chuva, ou broa de milho, com café. Só aí a gente poderia ir ao futebol. Não havia outra atração. Não tinha televisão, nem bares. No domingo, nem se abriam as lojas, que eram vendas.
AVS – Dá para situar a época de que você está falando?
Bercília Mozzer – Foi nos anos 50. Nós morávamos em Macabu e mudamos para cá em 1954. Nós já estávamos com uma certa idade e não sabíamos ler e escrever. Eu, por exemplo, aprendi a ler e escrever com 10 anos. Quem me ensinou a ler e escrever, na escola de Maria Mouta, foi Teresa Brust, que era auxiliar de dona Maria Mouta. Nunca me esqueci do dia em que ela me deu um livro e eu li o texto. E dali, continuamos. Papai tinha muita vontade que os filhos aprendessem a ler e escrever. Todo dia tínhamos que ir à escola, ele não deixava faltar. Minha mãe às vezes dizia que deveria um dia eu ir à escola e, em outro dia, minha irmã. E meu pai dizia: “Não, senhora. Vão as duas todo dia. Quando elas chegarem em casa, elas arrumam a cozinha, lavam a roupa, botam a roupa para secar, mas não podem faltar à aula”. Ele tinha muita paixão pela educação dos filhos.
AVS – O seu pai tinha terras em Macabu. Lá tinha produção agrícola?
Bercília Mozzer – Tinha. Lá ele plantava batatas. Era o forte. Plantava também milho, feijão. Naquela época nem existiam estradas, nossa mudança para Lumiar veio em cima de lombos de burros. A tropa nos trouxe até aqui. Meu pai tinha também uma tropa, com cerca de dez burros. Tinha um que vinha com uma campainha no peitoral. Ah! Se eu pudesse encontrar aquele peitoral... não sei onde está. Era a coisa mais linda, devia ter umas 15 campainhas no peitoral da mula, que se chamava Mineira. Era ela que comandava a tropa. Quando e tropa apontava lá na curva, longe da nossa casa, a gente escutava as campainhas. E aí, corríamos para a janela para ver papai chegar.
AVS – Era ele que levava?
Bercília Mozzer – Era ele quem conduzia a tropa. Tinha empregados, mas era ele que conduzia. Ele tinha um burro chamado Triunfo em que ele ia montado e a Mineira comandava os outros animais. Ele ia para Barra Alegre levar batatas. Também levava para Boa Esperança, para o seu Orlando Schuindt, que comprou muita carga dele. Seu Orlando tinha um caminhão Chevrolet, de cor verde, e comprava dos lavradores e levava para o mercado. Seu Mansur, que era irmão do seu Nagib, também tinha uma tropa de burros que ia a Macabu buscar batatas.
AVS – Quantas viagens por semana seu pai fazia?
Bercília Mozzer – O máximo que ele fazia, quando colhia o produto da lavoura, era duas viagens. Era muito longe. Depois, muito preocupado com a educação dos filhos, meu pai transferiu a família para Lumiar...
AVS – Por causa da fama da Maria Mouta...
Bercília Mozzer – É. A dona Maria Mouta é uma pessoa que não pode ser esquecida, foi uma grande educadora. As crianças estudavam aqui até a 5ª série. Depois iam para o colégio das irmãs [Dorotéias]. Era a Maria Mouta que arranjava essa vaga para as meninas irem estudar lá. Elas ficavam internadas. Porque não tinha ônibus a toda hora. E também não vinham em casa toda semana. Às vezes ficavam dois meses sem vir em casa. Depois, fiz um curso na Universidade Rural, em Seropédica. Ali aprendíamos de tudo, português, matemática, a costurar, a fazer bolos...
AVS – Você foi diretora de várias escolas, não foi?
Bercília Mozzer – Fui. Tudo era muito difícil. Comecei a dar aulas em 1963, em Ribeirão das Voltas [localidade de Lumiar]. Meu pai me deu uma égua pampa, preta e branca. E eu passava por todas essas vargens de Lumiar montada na minha égua. Quando chegava nos lugares, amarrava a égua no meio de uma moita de capim e ia dar aulas. Trabalhei 15 anos como leiga [professora não formada em curso Normal] e aí veio o curso à distância em que me formei. Eu estudava tanto que nem ia à casa de minha mãe. Nessa época, eu morava em São Pedro da Serra e estudava todo o tempo que podia. Quando terminei o curso, veio o concurso em que fui aprovada e aí me efetivei. Peguei meu diploma – o que foi a maior alegria de minha vida – e imediatamente assinaram minha carteira como professora formada. Trabalhei três anos e me convidaram para ser diretora. Isto já em 1981. A Maria Mouta me indicou para ficar em seu lugar. Ela teve um AVC em 1989, ficou oito anos na cama, morreu em 1997, se não me engano. Ela deveria ser lembrada. Ela deixou aquele patrimônio da Ação Rural, aquilo foi obra dela. E deixou para quem? Para o povo de Lumiar.
AVS – Como foi isto?
Bercília Mozzer – Antes não existia Ação Rural, era um pré-seminário e a dona Maria Mouta tomava conta, era ela que tomava conta de tudo da Igreja, em Lumiar. Depois, a Maria Mouta ficou doente e não tinha mais como ficar com os pré-seminaristas ali. Veio, então, o padre Miguel da Nóbrega, que transformou o pré-seminário em Ação Rural de São Sebastião de Lumiar. O objetivo era permitir que o lavrador levasse seu produto direto ao consumidor. Então os lavradores tinham que se unir para trazer as mercadorias. Inclusive, aquele galpão foi feito para armazenar as mercadorias, que dali iriam para o consumidor. O padre Miguel até comprou um caminhão. Mas, como não funcionou, usa-se o lugar, agora, para festas, casamentos.
AVS – Você viveu aqui em uma época em que havia uma agricultura forte, que depois se desfez. Como você interpreta essa mudança?
Bercília Mozzer – A lavoura tem épocas em que dá dinheiro e outras em que não dá. Às vezes o lavrador planta, tem uma lavoura maravilhosa, e não dá preço. Às vezes, não dá uma plantação boa e o preço está lá em cima.
AVS – Mas antigamente os lavradores conseguiam melhores preços.
Bercília Mozzer – Isto é verdade. Antigamente, o pessoal vivia da lavoura, não existia turismo aqui. Poucos viviam do comércio, seu Nagib, seu Heitor, os Gouveias, seu Orlando Schuindt. Em São Pedro havia o seu Anísio, seu Aristão Martins. Havia os Blaudt, lá em cima...
AVS – ...e fica assim até, mais ou menos, 1980...
Bercília Mozzer – É, por aí. Nos anos 80, a coisa começou a mudar. Depois, veio a luz elétrica, a televisão, o primeiro grau completo, de primeira a oitava série. E tudo foi se modificando. E o turismo, também foi nos anos 80 que começou a chegar aos poucos. Muita gente daqui vendeu suas terras e foi morar em Friburgo. E aí, o que acontece é que alguns desses compraram lotes e passam finais de semana por aqui, estão voltando a morar aqui. São muitos.
AVS – Agora, uma outra questão: existia aqui um mundo agrícola e as pessoas eram formadas dentro desse mundo, para viver esse mundo, que, de repente, quase deixou de existir. Com isto, os jovens ficaram meio sem perspectivas e começaram a surgir problemas como o alcoolismo e o consumo de outras drogas. Como você encara este problema?
Bercília Mozzer – Acho que é uma coisa muito complicada e muito séria. Eu acho que o governo tinha que dar algum apoio a esses jovens adolescentes para eles não caírem nessa vida de beber e de consumir outras drogas. E era preciso alguma coisa que segurasse os jovens aqui. Em primeiro lugar, um bom colégio, uma boa educação. Isto talvez segurasse o jovem aqui. Seria preciso também dar trabalho para esses jovens para eles não precisarem sair daqui.
AVS – E as atividades culturais, elas também podem contribuir? Uma das coisa que seu pai fazia questão, por exemplo, era de que os filhos tocassem na Euterpe Lumiarense.
Bercília Mozzer – Meus irmãos, ainda muito pequenos, tocavam pistão, um deles, e saxofone, o outro. Hoje não temos quase nada para oferecer aos jovens. Precisamos de um bom colégio, um curso profissionalizante. Está na hora de Lumiar crescer mais e não ficar só recebendo turistas. Nós não temos posto de saúde. Eu saio às 5h30 para caminhar e vejo aquelas pessoas, mais de 30, no frio ou na chuva, sem ter uma varanda. Isso não pode acontecer.
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