Entrevista - Um personagem de São Pedro da Serra

quinta-feira, 05 de agosto de 2010
por Jornal A Voz da Serra

O historiador Jorge Miguel Mayer, personagem fácil de encontrar em São Pedro da Serra, onde vive desde 1984, apesar da se mostrar uma pessoa sossegada em um lugar tranquilo, tem tido uma vida bastante movimentada. Originário da cidade do Rio de Janeiro, graduou-se em história pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, na época, ainda, Universidade do Brasil) em 1966, fez mestrado na Itália, onde viveu de 1974 a 1978, e doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF). No mestrado na Itália, estudou a crise do capitalismo mundial e suas repercussões no Brasil; sua tese de doutorado, defendida em 2003, foi Raízes e crise do mundo caipira: o caso de Nova Friburgo. Isto é, do mestrado ao doutorado passou do global à pequena localidade. Coordenou, junto com João Raimundo Araújo, a pesquisa que resultou, também em 2003, no livro Teia Serrana, sobre a história de Nova Friburgo.

Em mais de duas horas de conversa, falou da história local e da escravidão na região, temas tratados em seus trabalhos. Também discutiu as possibilidades da formação do operariado friburguense, depois da industrialização iniciada em 1910, como um dos elementos da construção cultural da cidade. Além do que ele pensa e das perguntas que se faz, sua própria vida conta uma história. Trata-se de um personagem que transita entre São Pedro da Serra e as pesquisas acadêmicas, uma delas tendo resultado no livro Os crimes da fazenda de tábuas, publicado em 2008, em que os autos de um processo penal de 1850, em Nova Friburgo, tornam-se signos representativos de relações sociais.

Este personagem, porém, diferentemente dos construídos apenas em livros, é conhecido na região, está vivo e acessível e aqui vai o resumo de uma conversa com diversas indagações levantadas, que pode ensejar muitas outras questões e conversas.

A VOZ DA SERRA - É uma grande mudança de perspectiva de vida. Você era uma pessoa de um grande centro urbano, formou-se na universidade, participou de movimentos estudantis e políticos, foi para a Europa, passou lá anos estudando o capitalismo mundial, isto é, uma questão global, e veio parar aqui em São Pedro da Serra. Como foi essa passagem?

Jorge Miguel Mayer - Voltei da Itália em 1978 e vim para São Pedro da Serra. Tudo começou com uma certa casualidade. Começou porque eu achei a região muito bonita. Vim aqui casualmente e comecei a ficar fascinado. Esse fascínio foi formado por dois atrativos: primeiro, a natureza; em 1984, essa região era ainda mais verde, mais primitiva, era mais natureza do que é hoje, que ainda é bastante. O segundo atrativo foi a maneira de viver, era uma região onde havia uma vida bastante diferente da vida urbana, com outros ritmos, com outra mentalidade, com outra aspiração e isso me seduziu. Aos poucos, essa fusão entre ambiente natural e uma perspectiva de vida diferente da vida urbana foram os grandes móveis da nossa permanência aqui. Então, em 1985, eu comprei este sítio onde eu moro, que me seduziu muito pela sua natureza. Como pessoa da cidade, não tinha esse contato com a natureza, que foi extremamente criativo e enriquecedor para mim. E eu resolvi, não só viver aqui, como trabalhar na região e fazer uma espécie de fusão geral: eu moro, eu estudo e trabalho na região. E como professor da Universidade Federal Fluminense eu tinha essa possibilidade, pois lá já existiam os cursos de mestrado e doutorado. Eu uni a compreensão da região, o amor pela região e a minha vivência direta na região. E as coisas se combinavam de uma maneira muito interessante: quanto mais você conhece a região, mais você vive a região. Se você não conhece bem a região, você tem uma vivência dos seus assuntos, mas quando você começa a vivenciar a região, você cria uma dialética, você conhece, quanto mais conhece, melhor você vive, quanto mais você vive, mais participa, quanto mais participa, mais conhece e isto enriquece você pessoalmente e aqueles que estão em volta. Eu tive vários orientandos e pessoas que estudaram comigo, a própria construção desse livro Teia Serrana, em parte é produto dessas ligações que eu fiz ao longo da pesquisa. Todos esses pesquisadores eu conheci através da pesquisa, a exceção do João Raimundo Araújo, que já era meu conhecido da UFF, nós fizemos doutorado na mesma época e eu tinha sido professor dele... isso lá nos anos 70.

AVS - Como foi essa chegada a São Pedro da Serra, como você conseguiu se instalar, depois de experiências, pelo menos aparentemente, tão diferentes?

Jorge Miguel - João Raimundo foi a primeira pessoa que eu procurei quando vim para cá e ele era professor da Santa Dorotéia. E eu pedi a ele que me indicasse alguém para trabalhar junto comigo, para quem eu iria procurar conseguir uma bolsa de pesquisa. E eu consegui, pelo CNPq (Conselho Nacional de Pesquisas). A primeira pessoa foi o Édson Lisboa, que escreveu um dos artigos do Teia Serrana, sobre café e escravidão, e também trabalhou comigo sobre escravidão aqui. Então nós fomos pesquisando a região, conhecendo e nos familiarizando com os desafios da região, até mesmo com os problemas da região.

AVS - Como você consegue unir suas experiências anteriores à vinda para São Pedro com as atuais?

Jorge Miguel - Em minha trajetória política e ideológica eu sempre me preocupei com a transformação revolucionária do Brasil. Eu também embarquei nas ideias revolucionárias, também militei no movimento estudantil, principalmente, e político-partidário, também, em busca de uma alternativa para o país, que foi se fechando. Encontrei justamente nessa região rural, na vida rural, uma alternativa de modo de viver mais livre das pressões urbanas e capitalistas de uma cidade. E também com ideais de construção e participação em comunidades com algum peso social diferente. Eu não posso esclarecer muito bem isto porque nunca foi muito claro. Não vou dizer que eu quisesse transformar São Pedro em uma república socialista, nada disso. Mas gostaria que o Brasil valorizasse mais a natureza, o que já seria uma coisa bem interessante.

AVS - Como você entende que essas pesquisas históricas podem contribuir para uma vida melhor?

Jorge Miguel - É preciso que os historiadores observem a vida do povo como um todo, em vez de ficarem apenas falando dos feitos políticos, é preciso que se considerem questões como estas: “Para onde foram os trabalhadores do café de Sumidouro?”, “Para onde foram os de Cantagalo?”. Tudo isto em busca de uma historiografia – que eu acho que é a do futuro – que vai estudar o povo e as condições de vida, incluindo qualidade de vida, ambiente, padrões alimentares. É isso que forma a nova história, coisas que no passado não se estudava... e ainda não se estuda.

AVS - Você não acha que isso se mistura um pouco com a proposta de trabalho dos antropólogos?

Jorge Miguel - Exatamente, dos antropólogos, dos sociólogos. Eles, junto com os historiadores, precisam se calçarem mutuamente. Isto é que é interessante, uma historiografia que pode fortalecer a consciência popular: uma historiografia que estude o povo, que estude realmente que povo é esse. Compreender como o povo vivia, quais eram suas estratégias de vida. É isto que é interessante, é o que vai restituir dignidade ao povo. Um povo que olha sua história e a compreende é um povo que tem dignidade. E no dia em que o povo tiver dignidade, o papo vai ser outro.

O final dos anos 1960, com o endurecimento da ditadura militar e o cerceamento da vida cultural no país, surgiu uma inclinação em muita gente pela busca de uma vida fora do ambiente urbano. Em 1971, uma música de Zé Rodrix (1947-2009), em parceria com Tavito, venceu o Festival da Canção de Juiz de Fora e pode ser uma representação simbólica desse desejo coletivo, de uma vida alternativa em determinado momento.

Casa no Campo

Composição: Zé Rodrix / Tavito

Eu quero uma casa no campo,

Onde eu possa compor muitos rocks rurais

E tenha somente a certeza

Dos amigos do peito e nada mais.

Eu quero uma casa no campo,

Onde eu possa ficar do tamanho da paz

E tenha somente a certeza

Dos limites do corpo e nada mais.

Eu quero carneiros e cabras pastando

Solenes no meu jardim,

Eu quero o silêncio das línguas cansadas,

Eu quero a esperança de óculos

E um filho de cuca legal,

Eu quero plantar e colher com a mão

A pimenta e o sal.

Eu quero uma casa no campo

Do tamanho ideal, pau a pique e sapê,

Onde eu possa plantar meus amigos

Meus discos e livros e nada mais.

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