Entrevista - Tradição, trabalho, música e futebol

quinta-feira, 23 de junho de 2011
por Jornal A Voz da Serra
Entrevista - Tradição, trabalho, música e futebol
Entrevista - Tradição, trabalho, música e futebol

Maurício Siaines

Nair Abicalil de Moura e Genserico de Moura são duas pessoas com origens diferentes; ele de Rio Bonito (RJ) e ela filha de imigrantes libaneses da Região Serrana. Há 52 anos praticam o comércio, depois de adquirirem a Casa Libaneza, fundada pelo pai de Nair em 1920, em Nova Friburgo. Têm três filhos, que atualmente se responsabilizam pela loja.

Genserico dividiu-se na juventude entre o comércio e a carreira de cantor, tendo inclusive sido contratado pela Rádio Guanabara, no Rio de Janeiro. Quando estava a caminho da Rádio Nacional, com uma carta de apresentação que poderia lhe conseguir um contrato, pensou melhor e decidiu que não queria ser cantor profissional, mas dedicar-se às serestas em Rio Bonito como amador. Da experiência ficou-lhe o apelido sugerido de Gen Moura, que se adequaria melhor à carreira artística. Casou-se com Nair e levou-a inicialmente para morar em Rio Bonito, mas saíram de lá para Nova Friburgo em 1958.

Os dois, com a presença da filha Eliane, conversaram com A VOZ DA SERRA no último sábado, 18 de junho e ao final da entrevista Nair propôs que Gen, aos 92 anos, mostrasse seus dotes de cantor e ele não se fez de rogado. Explicou antes que procurava ter o mesmo estilo de Carlos Galhardo (1913-1985), nascido em Buenos Aires, filho de imigrantes italianos, e transferido para São Paulo e, depois, para o Rio de Janeiro. E, caprichando na interpretação, cantou:

Os sonhos mais lindos, sonhei.

De quimeras mil, um castelo ergui

E no teu olhar, tonto de emoção,

Com sofreguidão mil venturas previ.

O teu corpo é luz, sedução.

Poema divino cheio de esplendor.

Teu sorriso quente, inebria, entontece.

És fascinação, amor!

A VOZ DA SERRA – Como começou essa história de vocês em Nova Friburgo?

Nair Abicalil de Moura – Meu pai veio do Líbano, junto com o irmão, em torno de 1914, ou 1916, e abriu a Casa Libaneza em 1920, que teve três endereços na [então] Rua Alberto Braune. Depois, ele queria se casar, mas mal falava português, o que dificultava seu casamento com uma brasileira. Ele soube, então, que tinham chegado duas libanesas muito bonitas na Casa Chaleira, na Alberto Braune, 85. Ele gostou de uma das libanesas e casou-se com ela. O libanês não enrola e namora muito tempo: olhou, gostou, pede logo em casamento. Tiveram seis filhos. Ele teve vários endereços porque não gostava de comprar imóveis, achava que era empatar dinheiro. Então, mudava muito de endereço, naquele tempo o aluguel era barato e havia lojas disponíveis. Até que ele veio para cá [na Praça Getúlio Vargas], falecendo aos 64 anos. Minha mãe, então, tomou conta do negócio e trabalhou 40 anos com a loja, que deve ter uns 55 anos neste prédio. De todos os meus irmãos, só eu gostava de comércio e comprei a loja, junto com meu marido, que veio de Rio Bonito [em 1958]. Compramos e começamos a fazer algumas modificações. Nós lançamos muitas novidades, trabalhamos muito e a loja está comigo e meu marido há 52 anos. Estamos agora na terceira geração. Meu filho é engenheiro civil e trabalhou em obras por quase 20 anos, mas a engenharia cansa e não tem o ganho que ele esperava ter. Meu filho Luiz Eduardo, minha filha Eliane, que é professora aposentada, e minha filha Marize, que se formou em turismo, vieram então, nos ajudar. Os três filhos estão tocando e vai tudo indo bem. Estamos firmes há 91 anos, nunca quebramos, apesar de toda a concorrência.

Eliane Abicalil de Moura – Ele também mascateou, não foi?

Nair – Meu pai, quando veio do Líbano, antes de vir para Friburgo, foi para Duas Barras. Lá, ele montava em um burro, com as mercadorias em um saco e andava de casa em casa vendendo o que tinha. Depois foi para Macuco, até que veio para Friburgo para se casar. Antigamente chamava-se de mascate quem trabalhava assim. Eram também aventureiros.

Eliane – Fiz um levantamento e constatei que, naquela época havia mais 60 estabelecimentos só de libaneses, era a maioria dos comerciantes.

Nair – E esta loja sempre foi da família Abicalil, há 91 anos.

AVS – A tradição dos libaneses que vieram para o Brasil foi principalmente o comércio. Muitos foram mascates ...

Eliane – A maioria

AVS – A senhora disse que foi a filha que gostou do comércio. Como foi isso na sua vida?

Nair – É, eu sempre gostei de loja, do comércio.

AVS – Por quê?

Nair – Desde os 12 ou 13 anos, fui criada em loja. Depois, a gente pega aquele amor pela loja, que está em segundo lugar em minha vida, logo depois de minha família. Adoro esta loja, trabalho aqui sem férias e sem descanso há 52 anos. E não me sinto cansada porque faço o que eu gosto.

Havia grande tradição de libaneses em Friburgo. Tínhamos até um clube e agora estamos fundando outro. Antigamente era o Centro Líbano-Friburguense, hoje é a Associação Cultural Líbano-Friburguense. Já fizemos um almoço de confraternização e não fizemos o segundo porque o ambiente está ainda muito triste por causa da tragédia [das chuvas de janeiro], quando perdemos algumas pessoas, lá da Rua Cristina Ziede.

AVS – A senhora estava falando em almoço. Em sua família foi mantida a tradição da cozinha libanesa ou houve adaptação aos hábitos brasileiros?

Nair – Considero nossa cozinha a melhor, nossa comida é diferente. Em minha casa há a tradição, usamos muito a comida libanesa.

AVS – E a religião? É importante a religião na tradição cultural de sua família?

Nair – A religião forte lá do Líbano é a católica maronita. A religião foi muito importante, meu pai sempre foi muito católico, minha mãe também. A Conceição Abicalil, cujo pai era irmão de meu pai foi um exemplo.

AVS – A senhora nasceu e cresceu em Nova Friburgo mas, quando se casou, foi morar em Rio Bonito. A senhora sentiu falta de Nova Friburgo?Nair – Demais!

AVS – Especialmente de quê?

Nair – Da família, primeiramente, e do clima. Acho que morar em Friburgo é um privilégio. Meu irmão, Jorginho Abicalil fazia jingles, depois foi para o Rio de Janeiro, onde fundou uma agência de publicidade e foi em frente. Quase que o Brasil todo procurava a agência dele e aqui em Friburgo foi o primeiro a lançar essas propagandas na rua com uma Kombi. Depois, ele achou que aqui o campo era pequeno e foi para o Rio.

AVS – Comerciantes como vocês, com lojas na rua, conhecem muita gente, podem observar muitas coisas. Há alguma coisa mais marcante que a senhora tenha observado?

Nair – Sempre trabalhamos muito com o pessoal do interior, um pessoal sacrificado, da lavoura. Esta tem sido nossa tradição. Então a gente conhece esse povo todo do interior, que vem aqui fazer suas compras com aquela amizade antiga, aquela pureza que eles têm. Trazem verduras e frutas como cortesia. E isso no centro de Nova Friburgo, que ainda não perdeu aquele jeitinho do interior. A cidade cresceu, desenvolveu o turismo, mas ainda conserva esse caráter do interior.

AVS – Vocês, em sua prática no comércio, valorizaram muito o trabalho, não é?

Eliane – É uma cultura do trabalho.

Nair – E trabalho honesto. Atualmente começamos a usar os cartões magnéticos, pois tudo muda muito e, se não se acompanhar, para-se no tempo e isto não é nossa tradição. O libanês quando mete a cara, vence, ele luta e vence. Os libaneses vivem para os filhos, amam os filhos. Tenho orgulho de ser filha de libaneses.

Eliane – Ainda mais os primeiros que vieram. Minha avó veio sem nada, meus pais vieram para Friburgo só com a loja, tiveram que trabalhar muito. Ainda não tinham casa própria e aí foi muito trabalho e dedicação para a formação dos filhos, que era a meta deles. A cultura era essa: muito trabalho para formar os filhos.

Nair – Pela tradição que se manteve aqui no Brasil, o filho homem deve sustentar a família e as mulheres vão ser donas de casa, esta era a tradição dos libaneses, mas com o tempo foi mudando porque hoje a vida é completamente outra.

Eliane – Mas minha mãe e minha avó se dedicaram ao trabalho fora de casa, quebraram a tradição. Até hoje, muitas não fazem isto.

AVS – Então a senhora, dona Nair, já representa uma mudança dentro da tradição cultural, não é?

Nair – É, uma mudança. É a época. Porque continuar conforme à educação antiga não dava. Naquele tempo era muito mais difícil educar um filho e levá-lo à faculdade. Hoje é mais fácil, há os sistemas de crédito educativo, com esforço a pessoa se forma. Antigamente não era assim, era muito difícil formar um filho médico ou engenheiro.

AVS – Seu Gen, o senhor não é libanês, nem descendente de libaneses e, de certa forma, entrou nessa família, nessa tradição cultural, não é?

Gen Moura – É, passei por uma metamorfose: a vida é assim.

AVS – E pela sua expressão parece que essa metamorfose foi uma coisa boa.

Gen – É, muito boa.

AVS – E o senhor antes também trabalhou com comércio?

Gen – Trabalhei com meu irmão em uma casa de calçados, lá em Rio Bonito. Este foi o meu início. Mas eu gostava muito de música e tinha a intenção de me tornar um cantor profissional. Quase à beira disto, resolvi permanecer no comércio porque achei que ali era mais garantido do que outra tentativa qualquer, como a música. Com algumas exceções, a música é uma carreira muito ingrata, mesmo que se tenha o dom, que se tenha nascido para isto. Quando desisti de me apresentar ao diretor musical da Rádio Nacional me veio uma coisa na cabeça e resolvi sair para outro lado e não fui lá mostrar a carta do jornalista João de Deus Falcão. Eu conseguiria porque, modéstia à parte, eu tinha talento. Desanimei por completo, segui o comércio e estou satisfeito. Sem deixar a música de lado. Tenho o estilo do Carlos Galhardo, com quem conversei muito. Ele gostava de me ouvir cantar, mas respeitava minha escolha. Mas nunca deixei de cantar para os amigos. Meu negócio era ter minha família e uma coisa certa, mais garantida. E este foi o caminho que achei que devia tomar e não estou arrependido.

AVS – E o América, seu Gen?

Gen – É o América que eu sempre fui, desde 1929, não é brincadeira. Por intermédio de um primo americano doente, passei a ver jogos do América ali na Rua Campos Salles e me tornei um americano doente até hoje, apesar da situação do clube. Não tem jeito, eu gosto do América, sempre gostei. Quando morei no Rio, no bairro de São Cristóvão, às vezes saía e, sem querer, ia lá na Rua Campos Salles só para ver o campo do América, que tinha na entrada [o escudo do clube com] as letras AFC [de América Futebol Clube] e eu dizia que aquilo poderia significar: aqui fabricam-se craques. Sempre disse que o futebol e a música são coisas importantes na minha vida.

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O Islam, movimento religioso e cultural iniciado pelo profeta Maomé (570-632), a partir da atual Arábia Saudita, teve como consequências a expansão militar e ampliação de domínios e resultou, também, na unificação da língua árabe em toda a região do Oriente Médio. O Líbano e a Síria são países de história milenar que foram absorvidos pelo Islam, embora em ambos haja também o catolicismo ortodoxo e o culto maronita, que reconhece a autoridade do papa e prevê a celebração da missa em siro-aramaico, a língua que Jesus Cristo falava.

Entre 1299 e 1922 existiu o Império Turco Otomano, com capital, a partir de 1453, na cidade de Constantinopla, atual Istambul, na Turquia. A cidade foi, assim, a capital do Império Romano do Oriente, do Império Otomano e da República da Turquia até 1923. O Líbano e a Síria, assim como quase todos os países árabes, faziam parte do Império Turco-Otomano, derrotado militarmente na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e logo depois extinto.

Depois do fim do Império Otomano, Síria e Líbano foram governados pela França, até 1946, quando conquistaram a independência política. (Maurício Siaines)

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