Entrevista - No meio de uma desgraça anunciada - Gilney da Silva Oliveira

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011
por Jornal A Voz da Serra

Maurício Siaines

Gilney da Silva Oliveira, 35 anos, nasceu em Itaocara (RJ), mas sua família se mudou-se para Nova Friburgo antes que ele completasse um mês de vida, morando sempre em Conselheiro Paulino, inicialmente no Loteamento Floresta, por 18 anos, e depois no Loteamento São Jorge, onde mora até hoje. Ele é licenciado em música pela Universidade Candido Mendes, trompetista da banda Euterpe Friburguense e professor na Sociedade Musical Euterpe Lumiarense, onde contribui para a revitalização da banda criada em 1891. Vivenciou diretamente a tragédia causada pelas chuvas de 2011. Nesta entrevista ele partilha com A VOZ DA SERRA a experiência de sua formação musical e tudo o que vem passando desde a madrugada de 12 de janeiro, fazendo também uma reflexão sobre como a música e outras atividades culturais podem contribuir para a reconstrução da cidade.

A VOZ DA SERRA – Como aconteceu a música na sua vida, com que idade você começou a tocar?

Gilney da Silva Oliveira – Foi uma coisa interessante. Meu pai, quando veio para Nova Friburgo, começou a estudar música na igreja da Assembleia de Deus de Conselheiro Paulino. Ele levava o método para a fábrica em que trabalhava, a antiga Eletromecânica. Na hora do almoço, ele estudava, e começou a tocar justamente trompete, meu instrumento de hoje. Eu sempre o via tocando e, a partir dos 9 ou 10 anos, eu o acompanhava à igreja. Lá a banda tocava e havia o bumbo e a caixa. E eu queria praticar um pouco daquilo. Às vezes, faltava a pessoa que tocava o bumbo ou a caixa e eu substituía. E aí, meu tio, que era o maestro da banda na época me convidou para estudar música. A partir daí, eu e meu irmão gêmeo começamos a estudar na escolinha da igreja. Assim, comecei. Logo entrei para a banda da igreja, até que me informaram sobre a banda Euterpe Friburguense e me animei a procurá-la para me aperfeiçoar e fui lá. Era a época do maestro Cícero, em 1994. Fui aluno do saudoso professor Rubens, que me disse que já estava pronto para ir para a banda. Fui tocar trompa, durante um tempo, mas como já tocava trompete na igreja e eu outros conjuntos, preferi continuar com este instrumento. Estudei com vários professores, até que veio a oportunidade de fazer faculdade de música.

AVS – A sua formação musical aconteceu, então, paralelamente à escola e aos trabalhos que você teve antes de se tornar músico profissional.

Gilney – Mas hoje eu vivo do meu trabalho com a música, dando aulas e tocando.

AVS – Além da Euterpe Lumiarense, do distrito friburguense de Lumiar, em que outros lugares você trabalha?

Gilney – Na própria igreja onde aprendi a tocar. Hoje sou professor e maestro da banda, dou aulas na Assembleia de Deus de Olaria, passei agora em um concurso para trabalhar em escola municipal de Aperibé, passei no concurso da Faetec [Fundação de Apoio às Escolas Técnicas], no Rio.

AVS – Você poderia, agora, contar como foi sua vivência de toda essa desgraça que aconteceu na cidade? Onde você estava na madrugada do dia 12?

Gilney – Ainda cedo, na terça-feira, dia 11, eu havia marcado aula com o professor Érico Fonseca, trompetista da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais. Minha aula seria às 15h, mas, na segunda-feira à noite ele me ligou pedindo que antecipasse a aula para as 10h, porque ele pretendia ir para Belo Horizonte. Naquela terça eu já levantei meio indisposto e fui para a aula. Ele até falou comigo: “O que está havendo? Estou te achando meio estranho.” E eu disse que, realmente, naquele dia estava meio indisposto, como se esperasse que fosse acontecer alguma coisa. Havia momentos em que estava até tremendo. Saí da aula, fui para casa e minha esposa também estranhou, perguntando o que estava havendo. Só sabia que estava indisposto e aí nem estudei. Voltei-me mais para as filhas e a família. Estava chovendo bastante desde de manhã, à tarde parou um pouco. À noite ia dar aula, mas os alunos não puderam ir. Fiquei em casa e fui me deitar em torno das 23h30, mas não consegui dormir e a chuva continuava a cair. Cheguei a comentar com minha esposa que iria acontecer alguma coisa porque estava chovendo demais. À meia-noite, acabou a energia elétrica pela primeira vez. Sentei-me, então na cama e não dormi mais. Às 2h fui até o portão de minha casa e vi que a rua estava alagada, como nunca tinha acontecido antes. Chamei meu sogro, que mora no segundo andar e propus que ficássemos ali vigiando, porque, se acontecesse alguma coisa poderíamos tentar alguma solução. Estávamos preocupados com o irmão de meu sogro, cuja casa é mais embaixo e, às vezes, entra água. Mas ele tinha colocado uns sacos de areia, que protegeram a casa. Fiquei monitorando aquela situação até próximo das 3h30, quando a chuva diminuiu um pouco e resolvi ir dormir. Quando me deitei, comecei a ouvir gritos, no escuro.

E aí, ouvi minha cunhada que mora em uma casinha um pouco abaixo, pedindo socorro. Só tive tempo de calçar as botas para ir ajudá-la a tirar suas coisas de casa. Tudo isto no escuro. E aquele terror! Depois de socorrê-la, já estava amanhecendo e resolvi sair para saber como estavam meus pais. Quando amanheceu o dia e eu podia enxergar, resolvi sair, às vezes ouvindo gritos, depois deixando de ouvir, quando as coisas caíam. Fui para o Rosa Branca, onde moram meus pais. Tinha ligado para meu pai às 3h30, e ele disse que estava tudo bem, às 4h havia caído uma barreira atrás da casa deles, que arrastou o carro do vizinho. Quando fui para lá, de manhã, vi vários carros ficarem do tamanho de uma geladeira. Pedras, gente soterrada, gente machucada, inúmeras casas caídas. E aí, comecei a ajudar a tirar entulho, a tirar as pessoas.

AVS – E a chuva caindo?

Gilney – E a chuva caindo. Fiquei ajudando as pessoas direto, fazendo de tudo para ajudar as pessoas, abriguei três famílias em minha casa. Aconteceu também aquele pânico provocado pela notícia de que a represas teria se rompido e teve gente que enfartou e morreu. Saí correndo com minhas filhas, uma de 9 anos e outra de 11 meses, para o Rosa Branca, que é mais alto. Mas, graças a Deus, foi um alarme falso. No lugar onde fui criado, se estivesse lá, estaria morto, porque foi tudo destruído. Ainda nem consegui chegar lá.

AVS – E já retiraram os corpos?

Gilney – Ainda tem alguém. Contam a história de um rapaz que foi tirar o carro da garagem e foi soterrado. Com meu tio quase aconteceu a mesma coisa, o que o salvou foi não ter conseguido abrir a porta da garagem, até que alguém gritou para que ele saísse, porque a barreira vinha descendo.

AVS – E tudo isso começou naquela madrugada e durou ...

Gilney – ... do dia 12 [de janeiro] até praticamente hoje [dia 4 de fevereiro]. Estou distribuindo coisas em minha casa e na igreja. É uma luta. A vida ainda não voltou ao normal, ainda estou abalado psicologicamente.

AVS – Dá para falar como é esse abalo que você está vivendo?

Gilney – Vi mortas pessoas que foram criadas comigo, e as pessoas que ficaram e perderam coisas. Fico pensando no dia a dia e dói muito. Isso tem me afetado psicologicamente. Desse dia para cá, tenho estudado, programado minhas aulas e minhas apresentações, mas não é como antes, estou sem disposição para estudar. Ontem mesmo conversei com o dono de um estúdio do centro da cidade, onde às vezes faço gravações, e onde ele mora em Duas Pedras, caíram 25 casas. Qualquer coisa, qualquer barulho me faz sentir medo, medo de que se repita tudo aquilo. Estou sempre procurando os amigos para saber se estão precisando de alguma ajuda. Estou tentando voltar ao normal na medida do possível, retomar os estudos. Mas minha vida mudou muito, conceitos, modos de pensar e de viver, de encarar a vida de um outro modo, porque estou vivo pela graça de Deus, porque o que aconteceu ao redor da minha casa ... e a cidade está toda abalada, não se voltou ainda ao normal.

AVS – E você acredita que possa voltar ao normal?

Gilney – Eu acredito que se possa voltar pelo menos ao que era Friburgo em parte, as ruas, os bairros, limpos e com iluminação, com telefone e os ônibus, o ar para se respirar – porque hoje só se respira poeira. Mas o pessoal ainda não sabe o que fazer. Lá onde eu moro tem muitas confecções ...

AVS – Ainda tem?

Gilney – Tem. Algumas foram destruídas, mas foi a minoria delas.

AVS – Todos nós sofremos, mas quem esteve no meio de tudo o que aconteceu está vivendo uma emoção mais forte. Como você acha que a cidade vai sair dessa, superar essa emoção coletiva, gerada por todo esse sofrimento?

Gilney – É como disse um amigo: está todo mundo abalado e no mesmo barco. Pela minha experiência de vida, acho que o povo friburguense, mais do que nunca, tem que se unir para tentar reconstruir a cidade. Quem tem religião deve se apegar a ela ... e ajudar as pessoas. Não se deve pensar somente em si próprio. Precisamos nos unir e achar meio de deixar essa coisa para trás, o que é difícil. Vai sempre ficar alguma coisa na memória, mas é preciso pensar de agora para frente. Isso inclui a atividade que a pessoa exerça. Estou procurando voltar a fazer o que eu gosto. Acho que a cidade deve investir nessas coisas para voltar a trazer alegria para a praça. Isto para as pessoas se envolverem com outra coisa, com as atividades culturais – não só com a música – para a gente deixar um pouco dessa tristeza para trás. Quando a pessoa vai assistir a apresentação de uma banda, naquele momento ela está se esquecendo do que aconteceu e, sem saber de onde, tira uma força para continuar vivendo.

AVS – Fale um pouco do papel que a música pode ter nessa reconstrução. Você acha que a música vai servir só para fazer esquecer, ou a vivência de todo esse sofrimento vai também influenciar você como músico?

Gilney – Um amigo que acabou de me ligar disse que está aproveitando esse tempo para compor quartetos de trompete, ele se achou inspirado para compor quartetos para nós trabalharmos. Outras pessoas também estão trabalhando. Não acho que a música vá servir só para esquecer. A música traz muita união, porque quase sempre se está tocando junto com alguém. Nas bandas, geralmente, são 30 a 40 músicos e ali é o lugar onde se podem trocar ideias e palavras de conforto. Nós precisamos unir o povo e trazer essa esperança e essa alegria.

AVS – Unir o povo e desenvolver a esperança, é este o caminho?

Gilney – É a esperança que move a pessoa, o sonho de construir, a esperança de reconquistar aquilo que perdeu. Se queremos reconstruir a cidade, temos que ter esperança ... que a nossa Nova Friburgo possa ser nova mesmo, inclusive com vários conceitos que se alteraram. Há a questão da soberba, da pessoa achar que pode tudo, e a tragédia pega todo mundo. É preciso que nos unamos sabendo que somos todos iguais. E devemos pedir aos nossos governantes que comecem a pensar realmente no povo, e que pensem no por que foram eleitos, que foi para servir. E que isto não fique no esquecimento.

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