Maurício Siaines
A citação acima é da “Canção do Desterro”, música do compositor português Zeca Afonso a respeito dos emigrantes portugueses, onde há também um verso que diz: “Eu sou como o vento, que foi e não veio”. Esta foi a vivência da família de Mário Moreira, um cidadão friburguense que representa a experiência que é de muitos: a adaptação a uma nova realidade. Seus pais se mudaram do interior de Portugal para Nova Friburgo ao final dos anos 1940 e início dos 50, e aqui construíram suas vidas, tal como aconteceu com pessoas de diversas outras nacionalidades. Artista plástico e professor, Mário voltou a Portugal, onde viveu 14 anos, casou-se e teve um filho. Sua filha, mais nova, nasceu em Nova Friburgo. Conversou com A VOZ DA SERRA sobre a experiência sua e de sua família, refletiu sobre a cidade de Nova Friburgo e sobre as artes.
A VOZ DA SERRA – Você e seus irmãos nasceram aqui e os pais de vocês vieram de Portugal. Como foi esse processo de mudança de país para seus pais?
Mário Moreira – Ele vieram fugidos de uma situação muito difícil em Portugal, que era uma pobreza muito grande na zona rural. Minha mãe trabalhava em uma quinta [propriedade rural com moradia, destinada à agricultura], a família dela cuidava dessa quinta, não era proprietária, arrendava a quinta. Produziam e davam uma percentagem do que ganhavam para os patrões. Levavam, assim, uma vida em que, pelo menos comida, não faltava. A família do meu pai era de artesãos em madeira, uma espécie de marceneiros. Faziam violinos, caixinhas de rapé, cabos de ferramentas. A família tinha uma tradição que a tornava conhecida como “os jugueiros”, pois faziam aqueles jugos dos bois. Só que eram jugos especiais para festas e feiras, eram muito enfeitados. Nessa situação de muita pobreza, meu pai optou por vir para cá para trabalhar em um restaurante e armazém do irmão da minha mãe, que é o Bar América. Meus pais já eram casados, mas meu pai veio um ano antes.
AVS – Esse seu tio, então já tinha vindo e se estabelecido aqui em Nova Friburgo.
Mário – Já. Eles eram 11 irmãos e esse meu tio era entregador de compras do Bar América, que tinha uma armazém anexo, que era de um outro irmão de minha mãe. Meu pai começou a trabalhar como garçom, passou a ser sócio e, depois, comprou a parte do meu tio. E nascemos os quatro irmãos ali, morávamos em cima do Bar América. É curioso como tenho a impressão do Bar América muito maior, porque vivi lá até os quatro ou cinco anos, morávamos em cima. Depois meu pai construiu o Edifício Moreira [na Avenida Euterpe Friburguense,] e viemos para cá. E essa relação de meu pai com o restaurante foi intensa até que, ao final de sua vida, eu e meus irmãos o convencemos a parar para descansar um pouco e voltar a Portugal, para resgatar sua infância e adolescência. Ele veio para cá muito jovem, com 20 anos. Aos 16 ele ficou responsável pela família, porque perdeu o pai, a mãe e o irmão mais velho, tendo então de cuidar de duas irmãs e da casa. Ele então foi para Portugal, onde ficou dois anos tentando reaver a casa de sua família e não conseguiu. Voltou para cá desgostoso e acabou falecendo um ou dois anos depois. Depois disso, minha mãe teve um oportunidade de reaver essa casa e eu era o filho que estava disponível. Fui, então com ela, com o objetivo de passar um ano, para conseguir reaver a tal casa. Depois, minha mãe voltou e eu fiquei 14 anos, conheci a Cristina, com quem me casei.
AVS – E em que ano seu pai veio para cá? Lá pelo anos 50?
Mário – Isso. Meu pai foi dono do restaurante de 1955 a 1965. Eu nasci em 1961 ... ele deve ter vindo em 1947, 48. ou no início da década de 50.
AVS – Seu pai representa muito claramente a experiência dos imigrantes portugueses. No Rio de Janeiro, então, essas figuras são comuns ...
Mário – ... particularmente, Friburgo é uma cidade interessante porque recebeu gente do mundo inteiro. Lembro-me de, jovem, estudar no Colégio Anchieta, que era um colégio aberto a todas as classes. Tive amigos muito ricos e outros muito pobres, que não sei se estudavam com alguma espécie de bolsa. Não tinha consciência disso porque convivíamos todos. E se for ver os sobrenomes dessas pessoas, constatamos serem de todas as partes do mundo. Tive amigos descendentes de árabes, de japoneses, portugueses, italianos. Cada sobrenome revela uma origem. Friburgo tem essa característica de ter gente do mundo inteiro. E sempre vivemos em paz, somos um exemplo para o mundo dessa convivência que não julga pela bandeira, pela religião. Isto foi uma coisa que me marcou muito, esse orgulho de conhecer gente que tem histórias do mundo inteiro.
AVS – Você é, então, aquele friburguense aberto para o mundo.
Mário – Mas, durante muito tempo, estive fechado para o mundo.
AVS – Por quê?
Mário – Acho que é uma característica de cidade do interior, que ficou isolada e acabou tendo uma vida própria, desde a época do auge do café. Na minha infância, havia seis cinemas em Nova Friburgo, com salas grandes. A cidade se bastava. Para se passar a infância, não havia lugar melhor. Na altura da adolescência, as pessoas querem ver o que tem do outro lado da montanha. E o Rio ficou sendo uma saída. Muitos foram e não voltaram. Outros, acabaram retornando para Friburgo.
AVS – Essa autonomia de Friburgo a que você se referiu tem uma caráter ambíguo: se, por um lado, fechava a cidade, por outro, era uma cidade muito misturada culturalmente. E isto, como você vinha falando, enriquecia a cidade ...
Mário – ... eu acho que sim. Eu me lembro da Feira da Bondade, que aconteceu muitas vezes, e culminava com uma festa aqui no Suspiro, com as barracas de cada país. Antes, tinha o desfile de todas as comunidades pela Alberto Braune, tinha o hasteamento das bandeiras ... fui muitas vezes com meu pai hastear a bandeira de Portugal. Era interessante porque ali estavam todas as comunidades e todo mundo se conhecia ... era o pai do amigo alemão, cuidando da bandeira alemã, meu pai muitas vezes foi cuidar da bandeira portuguesa. Tinha essa coisa do mundo, mas, ao mesmo tempo, era uma cidade em que todo mundo se conhecia.
AVS – Essas perguntas se justificam por essa sua natureza pessoal de artista. Os artistas, de um modo geral, percebem coisas que os outros não veem. Havia essa cidade fechada, mas multicultural. Depois, quando vem a crise econômica, a cidade teve que se abrir, muitas pessoas começaram a buscar outros lugares para viver ...
Mário – ... são os tais filhos da terra que ganham o mundo, mas depois acabam voltando por essa necessidade de estarem em um lugar de equilíbrio, eu vejo muito assim. Passei esses 14 anos fora e nunca tinha pensado em sair de Friburgo, sofri muito quando fui estudar [Belas Artes] no Rio, durante cinco anos. Eu era aquele estudante que ia para o Rio na segunda-feira, triste, e na sexta-feira já ia para a faculdade com a mala pronta para vir embora. Durante quatro anos, essa foi a minha realidade. Só no último ano, descobri o Rio de Janeiro, mas voltei para Friburgo, já desde essa altura, com vontade de ficar aqui. Nunca tinha pensado em passar 14 anos fora, ainda mais em outro país. Costumo dizer que voltei para Friburgo e não para o Brasil. Se fosse para voltar para qualquer outro lugar do Brasil, acho que não teria voltado.
AVS – E em que anos aconteceram todas essas coisas?
Mário – Fui para o Rio em 1978 para fazer o pré-vestibular e foi um desastre, sentia-me um peixe fora d’água. Depois, em 79, fiz um ano de arquitetura na Gama Filho e aí descobri a comunicação visual e a Escola de Belas Artes, para onde me transferi. O prédio da Escola de Belas Artes era o último do conjunto da Ilha do Fundão, lá no fundo, era um universo à parte. Eu gostava dos cheiros, dos falatórios, todo dia que se chegava à faculdade tinha uma exposição diferente no saguão ... aquilo era um espetáculo. Em tudo havia o aprendizado, não só dentro da sala de aula. São as pessoas que se conhece, as festas a que se vai, as exposições, as notícias, é um centro de criação.
AVS – E o Rio de Janeiro tem isso, não é?
Mário – Tem e eu só fui descobrir no último ano, 1985, quando fui morar em uma república, com amigos, no Flamengo, e me formei. Tornei-me, então, bacharel em comunicação visual, que era uma das opções que o curso oferecia. Hoje esta formação está inserida no curso de desenho industrial e a pessoa se forma em design, com a globalização do termo. Considero-me um designer de comunicação. Sempre desenhei, desde novo, desde criança e sempre tive muito forte a expressão artística, com muita habilidade com as mãos e uma imaginação muito fértil. E quando voltei de Portugal, em 2006, para onde tinha ido em 1992, apareceu-me esse novo desafio [de ser professor], desde 2008, que aconteceu naturalmente, que me leva a dividir minha experiência.
AVS – E lá em Portugal, o que você fazia?
Mário – Trabalhava em uma empresa muito grande, que estava em pleno crescimento. Era uma empresa que fabricava alarmes para automóveis e foi uma das pioneiras em Portugal, em uma época em que não se pensava nisso. Quando cheguei a essa empresa, em 1993, ela estava prestes a atingir o ponto máximo, porque apresentava tecnologia de ponta, num momento em que o alarme era um artigo de luxo. Foi uma das primeiras empresas a conseguir o subsídio da Comunidade Europeia e montou, então, uma fábrica. Lá eu pude tratar da imagem dessa empresa, era muito trabalho. Trabalhava com comunicação visual. Prestava serviço à publicidade, tinha que fazer os anúncios. Eu era o designer residente e cuidava da imagem da empresa. Quando cheguei, esse setor da empresa já existia, tinha um publicitário chefiando o departamento, que cuidava das estratégias de marketing. Mas precisávamos de uma imagem. Entrei na empresa através de um concurso em que era preciso redesenhar a marca da empresa. Depois, cuidei de toda a parte de sinalização interna. Pude aprender muito. Eram muitas lojas em Portugal inteiro e eu ia a elas para implantar o projeto, colocar o letreiro, padronizar a loja nas cores da empresa. Mas como artista plástico trabalhei muito pouco, não dava tempo. Talvez eu tenha tido sucesso na comunicação visual porque ia sempre buscar a experiência de artista plástico. Também acontece o contrário, meu trabalho em artes plásticas também vai buscar muito dessa experiência gráfica, ilustrativa. Meus quadros das bromélias são ilustrações. Uma coisa acaba ajudando a outra. Mas o trabalho como artista plástico tem uma expressão livre e no de comunicação visual você tem que viabilizar o que está na alma de outra pessoa, do seu patrão, ou de um grupo de pessoas, ou de um mercado que se queira atingir. É mais racional.
AVS – Você poderia falar da relação entre a produção artística e a comercialização de seus produtos? Como tem sido isto em sua experiência?
Mário – Existem inúmeros artistas que não tiveram qualquer tipo de mecenas e ficaram com uma vida em vão ...
AVS – ... então, o artista tem que lidar com a comercialização do seu trabalho, é uma coisa legítima, não é?
Mário – Eu acho que hoje vejo isto muito claro. É muita gente produzindo arte, são muitos artistas e o espaço para o artista conceitual, o artista pesquisador, vai ficando muito restrito, porque, por mais galerias que apareçam, por maior que seja o número de colecionadores, a produção artística é muito maior. Mas o mercado consumidor de arte também aumentou. Hoje, um casal de classe média quer trazer arte para dentro de sua casa. É aí que entra essa arte comercial, que dá mais oportunidade. Eu, hoje, com 50 anos, não tenho a ilusão de ser um grande mestre, de meu nome aparecer nos livros de arte. No início, todo jovem tem esse sonho. Quando entrei na faculdade, pensava em ser um artista famoso. Mas hoje, tenho a tranquilidade de conseguir produzir minha arte e tentar viver dela, transformando-a em um objeto de consumo e acho isto tão digno quanto ter peças em galerias e com colecionadores, porque permite a sobrevivência e você faz aquilo que sabe fazer. Não tive talento, não tive oportunidade? São opções ... talvez se eu tivesse ficado no Rio, se tivesse insistido no Porto [,em Portugal], teria conseguido um espaço de valorização do meu trabalho e talvez tivesse atingido esse público mais restrito. Hoje, consegui dividir meu trabalho em dois. Um, mais conceitual, com mais emoção e com mais alma, mais do meu interior. Minhas esculturas são assim, quando vendo uma delas, aquilo me dá um prazer muito grande porque se trata de uma empatia, um amor à primeira vista com quem compra. Mas tenho também esse trabalho comercial, que me dá prazer e agrada o público, que são as pinturas de bromélias, em que consegui uma linguagem muito minha e que tem uma saída comercial mais rápida. Mas nem por isso tem menos dignidade.
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