Entrevista - José El-Jaick

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015
por Jornal A Voz da Serra
Entrevista - José El-Jaick
Entrevista - José El-Jaick

Robério José Canto

O escritor e médico friburguense José El-Jaick, autor de  ‘O mensageiro do Vaticano’, ‘Malditas Mulheres’ e ‘Enquanto ela contava histórias’, revela nesta entrevista fatos de sua vida e de seu método de trabalho. Discorre sobre sua relação com a literatura e reflete sobre o sentido que ela tem para si e para a humanidade. A partir da descoberta de Graciliano Ramos, El-Jaick tornou-se leitor dos grandes nomes da literatura nacional e internacional, desde Ésquilo a Guimarães Rosa. À sua longa experiência profissional e humana, acrescentou as qualidades de pesquisador paciente e perspicaz para criar romances que mantêm o leitor preso a cada página, pela eficiente elaboração da trama, pela soma de informações que entremeiam a narrativa e pela qualidade literária de seu texto. 

 

Light – Como um criador de histórias, que tal contar um pouco de sua própria história? 

José El-Jaick – Nasci e vivi em nossa Nova Friburgo. Só me afastei por cerca de dez anos para morar em Niterói, cursar a Faculdade Fluminense de Medicina, trabalhar e frequentar cursos de pós-graduação. Antes disso, estudei no Grupo Escolar Ribeiro de Almeida, Colégio Anchieta, Fundação e Colégio Cêfel. Retornando de Niterói, já formado em Medicina, me instalei aqui definitivamente. Casei com Teresa, que me deu três filhos: Márcio, Juliana e Ana Paula. Há dois anos e meio ganhei um neto e estou prestes a ganhar o segundo. Venho de duas famílias de origem libanesa: El-Jaick, por parte de pai, e Gastim, por parte de mãe. Dediquei-me à pediatria por mais de 40 anos.


Quando, como e por que você começou a escrever? 

Meus professores de português, da época do então ginasial, gostavam de minhas redações e me incentivavam a ler e escrever. Quando um dia pedi à dona Therezinha (Barros), professora do Colégio Cêfel, que me indicasse um livro para ler (eu, que já lia sem critério o que aparecesse pela frente), ela disse: "Vá à biblioteca e pegue Vidas Secas, de Graciliano Ramos.” Covardia, não é? Como não se apaixonar pela literatura? Mais tarde, eu iria reler o livro algumas vezes, com o coração e a mente tomados de paixão pela arte no uso das palavras. Passei a "cometer” alguns continhos e versos, e usava qualquer tempo livre para ler romances, contos, poesias ou peças de teatro. Só bem mais tarde escreveria livros. O primeiro foi para pediatras em colaboração com meu amigo e colega Waldyr Luiz Bastos. Depois, outro para médicos em geral, especialmente jovens recém-formados: Independência financeira na Medicina. Um título infeliz, sugerido pelo editor, que achava o original, dado por mim, carente de apelo comercial. Arrependo-me até hoje de ter concordado com ele. Mas, na ocasião, a vaidade de ver o livro publicado atropelou meu bom senso e o livro saiu com aquele título de apelo material em lugar do meu, quase oposto, e que explicitava o objetivo da obra: Profissão Médica - qualidades necessárias para o sucesso. 


A partir de quando você pôde se dedicar à criação literária?

Só depois de me aposentar. Meu primeiro romance — O agente do Vaticano —, que levei cerca de cinco anos fazendo, foi aceito pela Editora Rocco, que o publicou em 2007. Essa grande editora continuou acreditando em mim ao publicar os dois que se seguiram: Malditas mulheres, em 2008, e agora, em fins de 2014, Enquanto ela contava histórias.


Tornar-se escritor modificou a pessoa que você era? Se sim, em que mudou?

Modificou. E não é para menos. Se pequenas coisas são capazes de provocar mudanças em nós, quanto mais uma enorme como a arte, a literatura. E é fácil entender as razões quando analisamos as matérias-primas de que se serve a literatura, e que constituem os temas mais contundentes a qualquer um de nós: amor, desamparo, solidão, fugas, ciúme, desejos, perda, superação, loucuras, morte, sonhos, ilusões, ódio, amizade, vida. Uma vez que todo escritor que se preza deve fazer com que o leitor reflita sobre aspectos e temas relativos a essas matérias-primas, ele precisa, antes de tudo, ser o primeiro a refletir mais profundamente sobre elas. E isso resulta em mudanças nele próprio.


Para que serve a literatura? Qual é, na sua opinião, a função da literatura?

Posso responder fazendo eco a opiniões de milhares de outros escritores, dizendo que ela serve para entreter, divertir, emocionar e fazer refletir. Mas ouso dizer que a função da literatura — e de toda grande arte — é provocar mudanças profundas. É mudar a vida, o mundo. Parece pretensiosa essa resposta, e talvez seja. Não sou doido de achar que meus livros mudarão o mundo, mas, ao escrevê-los, ao tentar fazer com que o leitor reflita sobre temas fundamentais à vida, a intenção não deixa de ser essa. É um paradoxo. Guarda certa analogia com aquele de Fernando Pessoa: O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente. O paradoxo de se saber um bicho tão pequeno e, mesmo assim, pretender mudar o mundo é a cruz de quem lida a sério com literatura. O mundo só mudará com a mudança dos seres humanos. Algo talvez impossível de se conseguir. Mas cabe à arte tentar, porquanto não há outra saída para a humanidade.


Grande parte de sua vida foi dedicada à Medicina. O médico influencia de alguma maneira o escritor? 

No livro que escrevi para médicos refiro-me a três tipos de qualidades indispensáveis ao exercício profissional: técnicas, funcionais e humanísticas. A posse dessas qualidades conduzirá o profissional ao sucesso, sendo este o êxito nos diagnósticos e tratamentos, o reconhecimento dos clientes e colegas de profissão. Qualidades humanísticas são as que o médico necessita para compreender os seres humanos que o consultam. Pensemos em um pediatra atendendo a cada dia mais de 30 crianças com seus pais e avós aflitos e temerosos, durante mais de 40 anos. É impossível que a sucessão e o somatório de tanta carga emotiva e incontáveis experiências não causem grande influência no escritor.


Parece que você conhece muito bem o contexto histórico e a cultura dos povos a que pertencem seus personagens. Você recorre a conhecimentos acumulados ao longo da vida ou faz muita pesquisa? Nesse caso, quais são suas fontes?

As duas coisas. Conhecimentos acumulados e sentimentos vivenciados ao longo dos anos alimentam o conteúdo essencial das obras. E as pesquisas contribuem na estruturação delas, na construção dos enredos e ambientações. Os três romances que escrevi exigiram muita pesquisa, pois se situam, em boa parte, em tempos passados: o primeiro, completamente; os dois seguintes tratam de protagonistas atuais que se envolvem com histórias e personagens de tempos remotos. Isso exige que se conheça não só os costumes e os lugares onde as tramas se desenvolvem, mas também detalhes que podem arruinar todo o trabalho se não forem abordados corretamente. Tudo tem que ser pesquisado. As fontes devem ser absolutamente confiáveis: livros de bons historiadores, biografias e enciclopédias consagradas. A internet ajuda bastante, desde que se tenha bom senso na escolha das fontes, pois a quantidade de besteiras que ela fornece é também enciclopédica. 


Como é o seu processo criativo? Ao começar a escrever você já tem uma ideia de como a trama vai se desenvolver, ou as criaturas vão agindo à revelia do criador?  

Só começo depois de ter uma ideia de como a trama vai se desenvolver e terminar. O final, o clímax e o desenlace são fundamentais para mim. Em O agente do Vaticano usei a estratégia de escrever o capítulo final antes dos demais. Assim, por mais peripécias que os personagens tivessem a audácia de fazer, eles e a história teriam de acabar da maneira que eu queria. No entanto, é preciso ressaltar que, no dia a dia da elaboração das histórias que compõem o livro, os personagens (uns mais que outros) tomem lá suas liberdades, ajam de modo imprevisto, sigam rumos não planejados por mim, criem tramas paralelas. Isso é bom. Dá vida à obra. Mas procuro fazer com que a liberdade deles não ultrapasse limites sem os quais o enredo corre o risco de se desviar dos objetivos finais e cruciais da obra. Mas essa regra também tem exceção. Não descarto a possibilidade de ser influenciado pelos personagens a mudar o final da história se, no decorrer das tramas, eles me derem uma ideia melhor do que a que eu havia preestabelecido. Em suma, o que quero dizer é que não consigo iniciar um livro sem ter um final para ele.


O que você gosta de ler, tem preferência por algum livro ou autor?

Quando não estou empenhado na escrita de um livro, leio romances e contos. É praticamente impossível não ser injusto ao citar alguns autores preferidos, esquecendo-me de outros. Mas não vou fugir da pergunta. Começo o dia tomando a bênção a quatro monstros sagrados da narrativa: os trágicos gregos Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, e Shakespeare. Saltando deles para os não sobrenaturais, e pulando clássicos da estatura de Cervantes, Flaubert e Tolstoi para chegar a narradores modernos, gosto de ler Thomas Bernhard, Alice Munro, Guimarães Rosa, Ian McEwan, Martin Amis, García Márquez, Amós Oz, Ismail Kadaré, Lobo Antunes, Philip Roth, Javier Marías e outros cujos nomes só lembrarei depois que essa conversa houver terminado. Quando estou escrevendo não leio romances nem contos. Atenho-me à leitura de poesias, ensaios e peças de teatro. 


Em "Enquanto...” você cita Millôr Fernandes: "Ter uma ideia/ É pôr a mão/ Numa colmeia”. Escrever é um processo sofrido ou prazeroso?

Ambas as condições. Acho que todo escritor é masoquista. Sofro até encontrar o narrador da história: se oculto, em terceira pessoa, onisciente, aquele narrador que sabe tudo que acontece em todos os lugares, que sabe o que vai pelo coração e mente de cada personagem; ou se em primeira pessoa pelo olhar de um ou mais personagens, aquele narrador mais próximo do leitor, mas com a desvantagem de só poder saber o que presencia ou imagina. E, pior do que escolher o narrador é encontrar a voz narrativa, o aspecto mais difícil e fundamental do romance, a meu ver. Sofro até conseguir o narrador e a voz, isto é, a forma como o conteúdo será narrado. Vencidas essas encrencas do narrador e da voz, vem a fase prazerosa, primeiro com a estruturação da obra, num processo longo e muito gostoso. Ao terminar, vêm as revisões e lapidações, mais prazerosas que sofridas. Porém, quando o livro vai para a editora e entra na fase de edição, haja sofrimento, pois se passaram meses que o coitado do autor leu e releu o livro no mínimo oito vezes, e o deu por terminado, e lá vem ele de novo, para ser mais uma ou duas vezes relido. Êta trabalheira, quando já se está às voltas com outra história e outros personagens. 


Tanto em "Malditas...” quanto em "Enquanto...”, as personagens femininas predominam, e elas também não faltam em "O agente...”.  Freud explica?

O que me intriga é o que me instiga a escrever. Em O agente do Vaticano foi a mudança do calendário juliano para o gregoriano, em 1581. Para executá-la precisaram suprimir dez dias daquele ano: o dia seguinte a 4 de outubro não foi dia 5, mas 15. Isso me intrigou: e se acontecesse alguma coisa "pecaminosa” no que seria o dia 10 de outubro, com alguém que estivesse longe de Roma e não soubesse da alteração do calendário? Como o papa Gregório XIII julgaria (ele próprio um jurista) algo ocorrido num dia que ele mesmo decretou que não existiu? Foi o ponto de partida para uma trama bem maior. Já Malditas mulheres trata de maldições, tema que intriga as pessoas. E em milênios de História, as mulheres foram e continuam sendo amaldiçoadas muito mais que qualquer ser vivo ou inanimado no universo. Daí serem elas as personagens principais do livro. Enquanto ela contava histórias, narrava desventuras e aventuras ocorridas na cidade e na época de Sherazade, a partir do dia em que o Sultão, revoltado com a traição da Sultana, decide desposar uma virgem cada noite e mandá-la para o cadafalso ao romper do dia. Somente após mil noites — e mil garotas mortas — é que a macabra rotina é suspensa, graças às narrativas de Sherazade. Com tantas mulheres amaldiçoadas e muitas outras sacrificadas, como não falar de mulheres? Não tenho culpa se elas protagonizam tantas histórias que, para mim, são intrigantes. Freud explica? Não, porque ele próprio admitiu que não entendia as mulheres, portanto, elas também o intrigavam. E, aqui entre nós, elas sabem que nos intrigam, e, de propósito e maldade, usam e abusam disso para nos enlouquecer e cativar (risos).


Você já tem algum novo livro em andamento?

Venho pensando na quantidade absurda de pessoas que desaparecem. Nada a ver com abduções por alienígenas. Falo de pessoas que desaparecem sem mais nem menos, pelo que dizem parentes e amigos estarrecidos com o sumiço. Desaparecem sem deixar indícios de que queriam se matar ou que sofriam de alguma enfermidade causadora de perda de memória, sem vestígios de que foram sequestradas ou assassinadas. No Brasil, oficialmente, some em média uma pessoa a cada 11 minutos. São mais de 50 mil a cada ano. Não é intrigante? Uma personagem que desaparece me intriga. Mas não fui ainda muito além dessa inquietação. Estou na etapa sofrida, bastante longe da prazerosa.

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