Especialista destaca dilemas que homens e mulheres parecem estar longe de resolver
Será que os homens estão perto de entender melhor as mulheres e vice-versa? Se a sua resposta é sim, está enganado. Dados de uma pesquisa dão conta de que isso está muito distante de acontecer. Salvo algumas exceções daqueles casais que conseguem ser muito felizes com a intimidade que conquistaram, especialistas alertam que nunca escutaram tantas queixas de ambos os lados.
Quem responde estas questões para o caderno Light é a doutora em antropologia social e professora do Departamento de Antropologia Cultural da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Mirian Goldenberg. Autora de mais de uma dezena de livros, entre os quais estão Por que homens e mulheres traem?, O Corpo como capital e Intimidade, Míriam dedicou 22 anos de sua vida acerca das inesgotáveis discussões sobre a afetividade masculina e feminina. A especialista trata com clareza e sensibilidade o assunto e alerta: “É triste ver que ainda há um abismo enorme entre os valores e significados na vida de um homem e uma mulher.”
LIGHT: Suas pesquisas sobre a construção da vida afetiva contemporânea apontam para distinções marcantes entre os universos masculino e feminino...
Mirian Goldenberg - É um fato comprovado e posso lhes assegurar com total convicção, depois de anos de pesquisa: a homossociabilidade é muito mais forte entre eles. Neste quesito as mulheres estão atrás. O que isso quer dizer? Que os homens se sentem mais relaxados e descontraídos entre os amigos. Já a maioria das mulheres prefere ficar com os namorados e maridos. Há um enorme descompasso entre os desejos e as demandas deles e delas.
LIGHT: E por qual motivo você acha que isso acontece e aumenta de proporção com o passar do tempo, em vez de diminuir?
Mirian Goldenberg - Depois do mapeamento que fizemos ficou claro que somos até hoje educados e socializados de forma muito diferentes. Meninos aprendem a jogar, competir, brincar e a provocar uns aos outros. As meninas aprendem a sonhar com príncipes e se inspirar em Barbies cor-de-rosa. Infelizmente é assim que ainda ocorre na maioria dos lugares no Brasil.
LIGHT: Pelo que entendi, você acha então que os homens continuam mais independentes?
Mirian Goldenberg - Essa palavra é complicada, mas vou te dar um exemplo que mostra como podemos fazer observações sobre isso a partir dos fatores mais banais. Observe nos parques, praias, shoppings e escolas: o cor-de-rosa reina no universo infantil feminino. O rosa não é só a cor das Barbies, mas também de vestidos, camisetas, biquínis, mochilas, sapatos, pulseiras, bicicletas, cadernos, lençóis, fantasias de princesa, etc. Enquanto as meninas estão de rosa da cabeça aos pés, os meninos vestem azul, verde, amarelo, vermelho, preto, cinza, laranja, branco e, até, algumas vezes, rosa. Vocês podem achar que não, mas estes detalhes influenciam muito mais do que você imagina.
LIGHT: Você acha que a mulher ainda é muito tolhida na infância?
Mirian Goldenberg - Os homens não são apenas mais livres no uso de cores, mas correm, brincam, gritam, jogam, se sujam e se machucam muito mais do que elas. O mercado ainda conspira muito para isso também. Nas pesquisas, muitas mães afirmaram que há uma ditadura do rosa, que as filhas acabam ficando viciadas nesta cor. Isso porque não há escolha para as que gostariam de mais diversidade. A comparação entre as cores e as brincadeiras de meninos e meninas sugere que faltará a elas, quando adultas, algo fundamental: liberdade. Ressalto, como disse anteriormente, que este é apenas um detalhe.
LIGHT: Como a liberdade foi avaliada nas pesquisas? O que vocês constataram?
Mirian Goldenberg - Ficamos impressionados que em todas as pesquisas que fizemos pelo Brasil com as mulheres das classes médias, a média geral foi unânime entre todos os territórios: elas afirmam invejar os homens. Já eles dizem não invejar absolutamente nada nas mulheres.
LIGHT: Será que não seria exagero a pequena ressalva de que a cor rosa influencia este processo?
Mirian Goldenberg - Não ia entrar muito neste detalhe, mas já que você insiste... Pelo que conversamos com os diversos psicólogos, o rosa parece estar falando de uma cultura que associa mulher à delicadeza, doçura, sensibilidade, inocência, fragilidade, fraqueza, passividade, inferioridade e submissão. De mulheres infantis e dependentes, que precisam da proteção de príncipes.
LIGHT: Você acha que homens e mulheres estão cada vez menos íntimos?
Mirian Goldenberg - Pode-se perceber, nos discursos dos homens e mulheres pesquisados, um verdadeiro abismo entre os gêneros quanto ao valor e ao significado da intimidade nos atuais arranjos conjugais.
LIGHT: Pode citar um exemplo?
Mirian Goldenberg - Encontrei muitas mulheres que buscam nas relações extraconjugais, com outros homens ou até mesmo com mulheres, a intimidade tão desejada. Por outro lado, encontrei muitos homens que buscam em suas amantes a compreensão que tanto almejam. Um dado interessante é que o desejo sexual ou a necessidade de aventuras parecem não ser o mais importante nos casos de infidelidade que pesquisei. O que ainda pesa é a falta de intimidade e o constrangimento na hora de pedir e expressar alguma fantasia sexual. Além disso, destacamos que a natureza própria de cada um é um divisor nesta relação.
LIGHT: De que maneira?
Mirian Goldenberg - Uma das maiores insatisfações femininas, entre as inúmeras citadas, é a impossibilidade de experimentar uma verdadeira intimidade, ou, como disseram, uma intimidade íntima com o parceiro. Nos discursos femininos é possível enxergar a ideia de que a natureza da mulher, em termos de autoconhecimento e de exploração da subjetividade, é superior à masculina. A objetividade, praticidade e racionalidade masculinas, bastante valorizadas em outros contextos, tornam-se impedimentos para um relacionamento íntimo. Elas se sentem lesadas por acreditarem que investem muito mais do que eles nesta busca por intimidade.
LIGHT: Mas vocês devem ter escutado o outro lado também, não é? O que eles disseram sobre isso?
Mirian Goldenberg - No discurso masculino é possível perceber que eles se sentem injustamente cobrados por não conseguirem corresponder às excessivas demandas das mulheres. Eles dizem que não se sentem compreendidos ou aceitos por elas, que se mostram permanentemente insatisfeitas e não reconhecem seus esforços para responder às ilimitadas e contraditórias exigências femininas.
LIGHT: São dois pensamentos divergentes. Você acha que qual lado acaba sofrendo mais?
Mirian Goldenberg - Posso responder isso com o seguinte dado: nas pesquisas, elas afirmam que, para os homens, intimidade se resume a fazer sexo, uma proximidade apenas física. Intimidade, dizem elas, é muito mais do que sexo. É uma maneira especial de estar juntos, conversar, escutar, compartilhar o silêncio, uma profunda comunicação psicológica, uma forma única de entrega amorosa.
LIGHT: Teve algum acontecimento engraçado ao longo desse trabalho que despertou sua atenção?
Mirian Goldenberg - Teve sim (risos). Um homem que pesquisamos, cansado das excessivas reclamações da esposa, pediu um momento a sós comigo para uma reunião importante no meio do projeto. Ao atendê-lo, escutei a seguinte reclamação: “Será que está na hora de queimar as gravatas em protesto contra a permanente insatisfação das mulheres?”. Pensei num primeiro momento que ele estava brincando, mas terminamos por ter que acalmá-lo, de verdade, pois vimos que a indignação dele era recíproca (risos).
LIGHT: Você falou sobre a falta de homem... Você acha que ainda existe entre as mulheres, em nossa sociedade, o “capital marital”?
Mirian Goldenberg - Acho que sim. Curiosamente, as brasileiras que se mostram mais satisfeitas não são as mais magras ou bonitas. São aquelas que estão casadas há anos. Elas têm esse “capital marital” a que você se referiu agora. Num mercado em que os homens disponíveis são escassos, principalmente na faixa etária pesquisada, as casadas se sentem poderosas por terem um “produto” raro e valorizado. Aqui, ter marido também é um capital. Nesta cultura, em que corpo e marido são importantes capitais, o envelhecimento é experimentado como período de grandes perdas.
LIGHT: Qual foi o índice de traição apontado nas pesquisas e quais foram os motivos apresentados, tanto pelos homens quanto pelas mulheres?
Mirian Goldenberg - Entre os indivíduos das classes médias que pesquisei, 60% dos homens e 47% das mulheres afirmam já terem traído seus parceiros. Apesar do comportamento infiel estar quase empatado, os motivos apresentados por homens e mulheres são completamente diferentes. Os homens dizem que amam e desejam suas esposas, mas não conseguem resistir à aventura sexual, atração física, vontade, oportunidade, instinto, vocação. As mulheres dizem que a traição foi motivada por insatisfação com o parceiro, baixa estima, vingança por ter sido traída, não se sentir mais desejada pelo marido ou por falta de atenção, conversa, carinho, romance e intimidade.
LIGHT: Você coletou dados que estão sendo pesquisados há 22 anos. Por isso, sei que tem uma opinião sincera formada a esse respeito. Então, sem rodeios (risos), de quem é a culpa: dos homens ou das mulheres?
Mirian Goldenberg - Bom, estou contra a parede agora e não tenho como sair (risos). Mas não vou enrolar também com um assunto tão sério. A maioria dos homens justificou suas traições por meio de uma suposta natureza propensa à infidelidade. As mulheres dizem que seus parceiros, com suas inúmeras faltas, são os verdadeiros responsáveis por suas traições. Portanto, a culpa da traição, na maioria das vezes, é do homem. Eles mesmos admitem, de Norte a Sul do Brasil, uma natureza incontrolável que os impelem a serem infiéis, o que acaba provocando também a infidelidade feminina. Também acho interessante observar, a partir dos meus estudos, que existe um verdadeiro paradoxo na fidelidade. Os indivíduos traem, mas consideram a fidelidade o principal valor para um casamento feliz. Como pode?
LIGHT: O que as pesquisas apontaram no âmbito virtual?
Mirian Goldenberg - Não posso deixar de mencionar a polêmica questão da traição virtual. Entrevistei homens e mulheres que vivem ou viveram esse tipo de relacionamento pela internet. Conheci inúmeros casos amorosos e sexuais que começaram pela internet e provocaram intensas paixões, mas também causaram extremos sofrimentos, ciúmes, separações, instigando uma discussão acirrada sobre se as relações que se limitam ao computador devem ser consideradas infidelidades ou apenas uma nova forma de “masturbação” estimulada pelas novas tecnologias de comunicação.
LIGHT: Existem pessoas, homens e mulheres, que preferem manter a relação puramente virtual?
Mirian Goldenberg - Entrevistei alguns homens e mulheres que disseram ter uma vida amorosa e sexual bastante intensa e excitante com seus amantes virtuais. Eles disseram estar bastante satisfeitos com este tipo de relacionamento virtual, afirmando não querer encontrar com seus amantes no mundo real ou ter qualquer outro tipo de relação com eles.
LIGHT: E o que esses indivíduos alegaram nas pesquisas?
Mirian Goldenberg - Disseram que as vantagens deste tipo de relação são incomparavelmente superiores às desvantagens, tais como poder estar com o amante somente quando têm vontade; deletar o amante quando se está cansado dele; não correr o risco de contrair doenças; não se sentir traindo verdadeiramente o cônjuge, já que a relação é apenas virtual.
LIGHT: Mas também tem outro lado. Dependendo da intenção, ela pode favorecer a busca pelas fantasias no âmbito real, não acha?
Mirian Goldenberg - Por outro lado, a internet tornou muito mais fácil os encontros sexuais. Alguns homens alegaram que nunca foi tão fácil encontrar mulheres como agora, especialmente em sites como o Facebook e outros. Eles dizem que não precisam mais gastar tanto tempo na paquera, como antigamente. Que hoje tudo ficou muito mais rápido e fácil. Um deles afirma que consegue ter uma ou duas transas por semana, só com mulheres que conhece no Facebook. Portanto, pode-se pensar que a rapidez e a facilidade proporcionadas pela internet dificultam as relações mais íntimas. Este é um tema que merece mais estudos.
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