Entrevista - Histórias de vidas e poesia - 16 de junho 2011

quinta-feira, 16 de junho de 2011
por Jornal A Voz da Serra
Entrevista - Histórias de vidas e poesia - 16 de junho 2011
Entrevista - Histórias de vidas e poesia - 16 de junho 2011

Maurício Siaines

Elisabeth Souza Cruz é conhecida em Nova Friburgo por sua atuação na União Brasileira de Trovadores (UBT), por sua presença na organização dos Jogos Florais — que acontecem há 52 anos na cidade, atraindo trovadores de quase todo o país e do exterior —, pela página mensal que faz para a UBT no jornal A VOZ DA SERRA e pelo programa que apresenta, também pela entidade dos trovadores, todos os sábados às 20h na Rádio Friburgo AM.

Nascida em 7 de outubro de 1953 em uma família de empregados da indústria de Nova Friburgo, Elisabeth cresceu, casou-se, teve duas filhas e levou a vida adiante. Somente em 2001 se sentiu mobilizada para participar ativamente dos movimentos relacionados à poesia, que sempre fez parte de sua vida. Mais tarde, em 2010, quase que acidentalmente, matriculou-se no curso de Comunicação Social da Universidade Candido Mendes de Nova Friburgo, situação em que se sente realizada. A primeira aula a que assistiu foi de Filosofia, que a encantou e levou-a a produzir um soneto (ver box abaixo), prática que levou adiante em todas as matérias com que já teve contato: são hoje 60 sonetos escritos que ela classifica como “ensaios poéticos sobre as disciplinas da Ucam”.

A respeito de sua relação com a poesia, ela lembra de um trecho do poeta Mário Quintana: “Fora da poesia, não há salvação”. E complementa com uma observação sua: “Tem coisas que a ciência explica, tem outras que só a poesia dá conta”. Abaixo, um extrato de conversa de Elisabeth com A VOZ DA SERRA, na última segunda-feira, 13.

A VOZ DA SERRA – Você sempre viveu aqui, em Nova Friburgo?

Elisabeth Souza Cruz – Sempre, amo minha cidade.

AVS – Existe um apego seu por histórias de sua família e da vida da cidade de um modo geral bem evidente para quem começa a conversar com você. Fale um pouco sobre isso.

Elisabeth – Gosto muito do presente, mas sou bem apegada ao passado, à minha infância, minha casa, minha família, meu pai, minha mãe e tudo que eles deixaram.

AVS – Em que lugar da cidade você viveu sua infância?

Elisabeth – Foi ali naquelas redondezas da Fábrica de Filó. Morei na Travessa Bonsucesso I; eram duas travessas. Ali era gostoso morar, aquelas casas pertenciam à fábrica e trabalhadores podiam desfrutar delas. Meu tio e minha mãe trabalhavam na fábrica e tínhamos direito a morar em uma das casas. Eu adorava aquela casa, era numa rua em que se podia brincar, naquele tempo, por volta de 1960.

AVS – Quais eram os nomes de sua mãe e de seu pai?

Elisabeth – Cirene Bravo Souza e Ari Souza. Minha infância foi aquela em que ainda não havia televisão, que era um artigo de luxo, e a gente brincava a maior parte do tempo. Era chegar do colégio, fazer o dever e brincar, tínhamos uma rua para brincar. Passavam poucos carros, só os dos moradores. Tinha o seu Moacir, que tinha um [carro da marca] Austin, que não esqueço. Minha varanda era o local onde minha avó descascava laranjas campistas. Ela era avó de todo mundo na rua e naquele tempo podia-se encher um prato de laranjas, que ela botava ali e todo mundo passava, sentava. Ela comprava um cento de laranjas. Veja como as coisas mudaram: hoje, para comprar uma dúzia, às vezes é preciso contar moedas para ver se o dinheiro dá. Ela comprava um cento. Como minha mãe trabalhava na fábrica, havia suas amizades, que iam lá, na hora do almoço, e minha avó tinha sempre aquele prato de laranjas em cima da mesa.

AVS – E seu pai?

Elisabeth – Ele trabalhou um pouco na Fábrica de Rendas ... naquele tempo, todo mundo trabalhava em fábrica. Quando encontramos algum conhecido daquele tempo e ele diz, por exemplo, que trabalhou na Filó, já se sabe mais ou menos a história da pessoa. Se trabalhou na Filó, tem todo um envolvimento conosco. Minha mãe, que não chegou a terminar o primário, leu muito e adquiriu uma ampla cultura geral. Mais tarde, ela estudou astronomia e astrofísica.

AVS – Como sua mãe foi encontrar tempo e oportunidade para desenvolver esse gosto pela astrofísica, trabalhando o dia inteiro na fábrica e cuidando da família?

Elisabeth – Ela sempre leu de tudo, estudava francês e inglês pelo rádio, ela e meu pai. Eles sempre foram ligados a essa ideia de estudar. Bem mais tarde, meu irmão, que se formou em sociologia, foi embora para São Paulo, aos 18 anos. Essa saída do meu irmão deixou minha mãe meio abalada e ela começou a se distrair com as noites. Ia para o quintal e ficava pensando na vida e olhando o céu.

AVS – Isso, ainda naquela região próximo à Filó?

Elisabeth – Não, já morávamos no Jardim Ouro Preto, para onde mudamos quando minha mãe se aposentou. Isto deve ter sido por volta de 1965. E ela desenvolveu esse gosto de ficar olhando as noites e pensando. E começou a querer entender o porquê das coisas do céu. E daí foi um pulo para ela começar a comprar livros de astronomia. Depois, ela se associou ao Clube de Astronomia do Rio de Janeiro, de onde recebia um boletim, por onde se atualizava. Começou a pesquisar, comprou um telescópio, que meu irmão trouxe de São Paulo para ela. Veio todo desmontado em uma caixa e ela e meu pai, com o inglês que tinham aprendido e mais o dicionário, traduziram o manual e montaram o telescópio. A partir daí foi fácil para ela sair e dizer: “Ali é a constelação de Escorpião, aqui é Libra”. Foi uma coisa incrível, ela começou a fazer pesquisas e estudar astronomia.

AVS – E tudo isto dentro da vivência de trabalho na indústria. Pelo que você fala de seus pais, mesmo com o pouco tempo que tinham, faziam por iniciativa própria, um esforço muito grande por aprender. Ninguém mandou sua mãe estudar astronomia, ela gostou e foi estudar. Como você acha que se formou em sua família essa inclinação por estudar?

Elisabeth – No caso de minha mãe, ela era tida como a intelectual de uma família de 12 irmãos. Isto, desde jovem. Ela contava que uma vez, aos 14 anos — já trabalhando na fábrica —, ganhou um prêmio da Filó e gastou todo o dinheiro em livros. E os irmãos acharam aquilo um absurdo.

AVS – E o seu pai?

Elisabeth – Também era assim. O gosto que minha mãe tinha por astronomia, ele tinha por mapas da Terra, por geografia. Ele trabalhou na fábrica, depois em um bar e depois comprou um bar, na Avenida Euterpe Friburguense. Ele comprava mapas e guias rodoviários. Quando íamos, às vezes, a São Paulo, ele estudava todo o trajeto, qual ônibus deveria tomar, onde saltar. Ele tinha essa paixão por conhecer os lugares através de mapas. Gostava de andar a pé. Dizia que andando de carro não se aprende coisa alguma. Eles eram assim, cismavam, pegavam um ônibus para o Rio, depois para São Paulo.

AVS – Seu pai era de Sana [distrito do município de Macaé, na descida da serra em direção à Baixada Litorânea], quando ele veio para Nova Friburgo?

Elisabeth – Ele nasceu em 1917 e veio para cá jovem, em torno dos 20 anos. Em 1938, ele já deu um livro a minha mãe com dedicatória. E naquele tempo, vinha-se a pé. Ele dizia que vir de burro era pior, porque o animal tinha que beber água e necessitava de cuidados, era como se fosse mais uma pessoa para ele tomar conta. Meu pai era um pouco boêmio e levou quase 30 anos para se casar com minha mãe, porque eles brigavam e uma vez passaram cinco anos afastados. Ele contava que fez as pazes com minha mãe, depois da última briga, por causa de um soneto de Guilherme de Almeida, que estava publicado em um jornal e ele recortou e mandou para ela através de uma colega. E toda a vida deles foi assim. Além de estudar, tocavam violão, que aprenderam também por conta própria. E eles sentavam na sala, ou na varanda, e tocavam e cantavam.

AVS – E qual acontecimento nacional teve significado mais forte na vida de seus pais?

Elisabeth – A morte de Getúlio Vargas. Eles contavam que foi uma coisa muito triste, aqui em Friburgo, porque ninguém esperava por aquilo, um suicídio. Eu tinha só um ano, mas tenho registro, já mais velha, de lembranças deles, uma tristeza, uma coisa que eles não conseguiram aceitar, eles gostavam do Getúlio. Lá em casa tem uma xicrinha com uma fotografia do Getúlio que era um objeto de valor para meus pais. Outra morte que chocou muito foi a do [John] Kennedy [presidente dos Estados Unidos, em 1963]. Lembro que foi uma choradeira muito grande.

AVS – E você, como foi desenvolver esse gosto pela poesia? Foi na escola? Em que tipo de escola você estudou?

Elisabeth – Minha primeira escola foi no meu bairro mesmo. Não esqueço de minha primeira professora, dona Neuza. Ela ainda é viva, mora no centro da cidade. Depois fui para o Ribeiro de Almeida, que é hoje o Instituto de Educação, aqui na Praça Dermeval Moreira. Fiz ali o primário, depois fui para o Colégio Estadual de Nova Friburgo, que é o Colégio Jamil El-Jaick, onde fiz o ginásio. Ia fazer ali um curso de secretariado, que acabou não começando e fui, então, para o Colégio Modelo fazer o curso de contabilidade. Gostei muito de estudar lá, mas contabilidade não tem nada a ver comigo.

AVS – E a poesia?

Elisabeth – Desde muito cedo, sempre gostei muito de escrever. Gostava daquelas redações de colégio. Escrevia em prosa, tinha certa dificuldade para fazer um poema porque não sabia onde devia colocar os versos. Escrevia uma prosa e depois ia jogando meio de qualquer jeito para ver se virava uma poesia. Começou no colégio, sempre tive caderno de anotações. Depois, a poesia passou a fazer parte mais seriamente de minha vida quando entrei para o movimento dos trovadores. Comecei a fazer trovas em 1983, no Primeiro Concurso Rosacruz de Trovas. Fiz uma que se classificou no concurso, mas ainda não tinha muita técnica. Em 2000 é que entrei mesmo para a União Brasileira de Trovadores. Quem gosta de escrever e tem uma folha de papel inteira, tem que aprender a condensar seu pensamento para escrever trova, tem que fazer uma síntese de seu pensamento, tem que rimar e escrever quatro versos de sete sílabas cada um. É um pouco difícil para quem gosta da liberdade de escrever, como eu. Mas o que me encantou foi a receptividade do grupo, do movimento, gostei das pessoas. Fiz uma trova, que era uma proposta:

Declarar-me, nem me atrevo,

Com palavras mais ousadas.

E, assim, os versos que escrevo

São propostas camufladas.

AVS – Essa ideia de alguma coisa camuflada é interessante. Alguns pensadores, discutindo a relação entre a palavra e a verdade, acham que o ser humano nunca tem certeza da verdade do outro.

Elisabeth – Fiz um soneto, quando comecei a estudar na universidade (*), para definir o que é filosofia, em que digo: “Ante as respostas, faz outras perguntas”. Porque, a partir do momento em que se responde uma coisa, já se está questionando outra. Aquela pessoa que acha que já sabe tudo, que já aprendeu tudo, não vai crescer.

Há uma trova que diz que “quem tem certeza, não sonha e quem não sonha, não vive”. A gente tem que ter essa incerteza. Essa busca da verdade, do que está por trás de uma verdade, é o que faz a gente se movimentar.

(*) Poema escrito por Elisabeth Souza Cruz, depois de sua primeira aula na Universidade Candido Mendes, de filosofia.

Soneto Platônico

É fácil definir Filosofia

e a sua posição perante o mundo...

Não tem mistério nem é fantasia

na eterna busca do saber profundo!

É um desdobrar-se na Sabedoria,

além da superfície.... ir lá fundo!

Mas há quem diga que não tem valia,

que é quase um pensamento vagabundo...

Filosofia, assim disse Platão,

é admirar-se, pois na contemplação,

as coisas se processam todas juntas...

E não se negue a sua utilidade,

porque a Filosofia, na verdade,

ante as respostas... faz outras perguntas!

CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
TAGS:
Publicidade