Maurício Siaines
A jornalista Maria Lúcia Martins lança, na EcoArte, em São Pedro da Serra, seu livro Ultrapassando os limites, pela editora Caravansarai, nesta quinta-feira, 30 de dezembro. A obra já passou por lançamento no Rio de Janeiro, em 6 de dezembro, e a autora se divide hoje entre esses dois locais, vivendo “cada vez mais em São Pedro e menos no Rio de Janeiro”. No trabalho está contada a história de Jorge López da Costa Moreira, comerciante e maçom, natural de Pelotas (RS), que, depois de uma segunda viuvez, em 1866, alistou-se como Voluntário da Pátria e foi tomar parte na guerra contra o Paraguai, que se iniciara em 1865.
Trata-se de um personagem que teve diversas experiências, no Paraguai, onde teve importante atuação no pós-guerra e se casou pela terceira vez, tendo também muitos filhos, e no Brasil, onde participou da organização de colônias militares, que, além de visar à proteção de fronteiras, contribuíam para a integração de regiões até então isoladas ao país. Enfim, é uma história incomum que enriquece o pensamento do dia a dia justamente pelas diferentes possibilidades de vida que apresenta, durante acontecimento de grande significado para vários povos, a guerra que abalou o sul do continente americano.
A autora, além de ter empreendido pesquisa em diversas fontes, iniciada em 2000, narra os acontecimentos na primeira pessoa, como se fosse o personagem contando a história a uma de suas filhas. A escolha do tema aconteceu meio acidentalmente, embora o acaso tenha trabalhado dentro de área de interesse de Maria Lúcia. Este e outros aspectos da construção do livro foram abordados em entrevista que ela deu a VOZ DA SERRA, na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro, na quarta-feira, 22 de dezembro.
A VOZ DA SERRA – Como você teve a ideia de fazer este livro?
Maria Lúcia Martins – Essa ideia me surgiu em um momento em que, como jornalista, tive uma folga para escrever as minhas coisas. E, coincidentemente, achei uma fotografia em álbum de minha avó, que estava enfurnado em cima de um armário, e aí comecei a lembrar das histórias que ela contava sobre o Paraguai. E resolvi pesquisar a respeito do que aquela foto me contava. A ideia veio, então, a partir da foto.
AVS – A sua avó era filha do personagem Jorge López da Costa Moreira...
Maria Lúcia – ...a Suzana.
AVS – A que se casou com um brasileiro.
Maria Lúcia – Foi a única filha que se casou com um brasileiro.
AVS – Você pode falar um pouco dessa forma que você utilizou para fazer o livro, o romance histórico?
Maria Lúcia – Eu tenho uma ligação muito forte com a história. Embora tenha estudado comunicação, vivia na faculdade de história, onde estudei, inclusive, história da América, que sempre me interessou muito, porque sempre fui muito intrigada pelo fato de estarmos sempre muito voltados para a Europa e não para a América. E aí eu resolvi começar a pesquisar essa história do meu bisavô a partir da foto, contar o que havia por trás daquela foto. E aí comecei a topar com documentos históricos importantes, inclusive coisas escritas pelo meu bisavô. Eu tinha conversado com o historiador José Murilo de Carvalho, no início da pesquisa, e ele me disse que procurasse encontrar coisas que ele [Jorge López da Costa Moreira] tivesse escrito. E isso foi me trazendo um compromisso maior de pesquisa e de desenvolver uma pesquisa histórica, mas em um formato de pesquisa histórica feita por jornalista, com um outro corte.
AVS – São compromissos diferentes o do jornalista e o do historiador, não é? Outra coisa que faz pensar é o seguinte: no momento em que você cria um personagem, em que você se transforma nesse personagem, que foi real, você dá a ele a sua vida, a sua imaginação do que era aquele momento histórico, junto com a experiência que você já teve. Você concorda com isto?
Maria Lúcia – Concordo. O recurso de narrar na primeira pessoa foi um meio, também, de poder juntar os vários tipos de relatos e documentos que eu fui colhendo nesse trabalho. E, ao mesmo tempo, como jornalista de economia, que eu fui durante muitos anos, tinha muito interesse em contar essa história da América, também por esse corte. E juntar mais ou menos as informações, o que é mais ou menos a cabeça de um comunicador social, de um jornalista, que é diferente da pesquisa de um historiador. E é interessante que, durante a pesquisa, eu via coisas que os historiadores não viam e eles me ensinavam o que eu não sabia. Foi uma troca muito rica.
AVS – Agora, sobre a guerra que nós chamamos de Guerra do Paraguai, e que os paraguaios chamam de Guerra da Tríplice Aliança...
Maria Lúcia – ...no mundo todo ela é conhecida como Guerra da Tríplice Aliança.
AVS – Outros autores, como Eduardo Galeano e Júlio José Chiavenato, caracterizaram a Guerra da Tríplice Aliança como resultado de uma interferência britânica na América do Sul. Dentro de sua pesquisa, isto se confirma?
Maria Lúcia – Olha, eles estão corretos. O que acontece é que essa guerra passou por vários tipos de interpretação. Com várias tintas nesse narrar da história. Muitas vezes, esses autores tinham as tintas da época, dos anos 1970. Por outro lado, interessava à ditadura no Paraguai colocar Solano Lopes como um herói. Isto segundo eu percebi, ou me contaram. Mas logo após a guerra – e este livro tem muita coisa desse pós-guerra, contexto em que o personagem conta sua vida, sobre a qual tive que recorrer a fontes primárias – havia muito sentimento antilopista. E esse sentimento foi passando por várias fases. Mas, hoje em dia, a Academia Paraguaia de História confirma essa visão de que houve uma interferência da Inglaterra. Não uma interferência política aberta, direta, de Estado. Mas, na minha pesquisa isto fica claro, inclusive com base em outras pesquisas de historiadores. Há a relação entre domínio que a Inglaterra queria ter sobre o Cone Sul, através da Argentina, cuja economia já era dominada por interesses ingleses, desde 1810. A economia paraguaia, por sua vez, era dominada pela dependência da Argentina. O capital inglês financiou as estradas de ferro no Paraguai. Já havia toda uma conjuntura econômica que mostra o interesse de tomar aqueles territórios, do ponto de vista estratégico e não apenas economicamente. É uma realidade muito complexa. Nem todos os documentos foram abertos, existem muitas versões. Havia uma luta política muito grande no Paraguai, havia, por exemplo, a Legião Paraguaia, que lutou contra Solano Lopes durante a guerra.
AVS – O seu personagem fala das Kigua Vera...
Maria Lúcia – Eram mulheres do povo, que participavam de uma estrutura tradicional no campo, que passavam todas as tradições, inclusive conhecimentos a respeito de plantio, de produção, eram elas que levavam os produtos ao mercado. Elas são muito referenciáveis como uma alma paraguaia, porque a mulher paraguaia é muito forte. O personagem até fala que a mater dolorosa do Paraguai não é como em outras culturas. Eram mulheres muito ativas e muito fortes, porque tradicionalmente os homens saíam para trabalhar e a presença da mulher era muito forte na economia das famílias. Essas mulheres, no sistema que havia anteriormente, eram ouvidas pelas autoridades para resolver problemas. Elas tinham toda uma presença.
AVS – Essa presença feminina na vida do Paraguai faz pensar na realidade de Nova Friburgo, dos anos 1990 para cá, quando as costureiras passaram a ter uma nova importância porque, afinal, elas se tornaram responsáveis pela entrada de dinheiro nas famílias e na região. Existe inclusive uma dissertação de mestrado em antropologia no Museu Nacional tratando do assunto. O autor dessa dissertação, Wecisley Ribeiro, não duvida de que nesse processo esteja acontecendo uma espécie de feminilização de Nova Friburgo. Em Bangladesh também aconteceu um fenômeno parecido estimulado pelo microcrédito...
Maria Lúcia – É que as mulheres vivem a economia cotidiana e elas se sentem responsáveis pela família, mesmo quando têm a ajuda do homem. Muitas vezes, esse homem não é presente por algum motivo, porque trabalha longe, ou porque o que ele ganha faz com que ele vá para outras esferas. Então, essa possibilidade da mulher gerenciar o seu próprio negócio e se organizar é fundamental para essa nova economia, que é uma economia solidária. Essa presença feminina, com a maneira como a mulher se organiza, é uma coisa muito forte. Isso aconteceu também na Itália, quando começaram a se implantar as cooperativas. A possibilidade de trabalhar em casa foi importante. Essa estrutura da costura possibilitou essa rede, trouxe a mulher para uma economia em que ela não só pode trabalhar em sua casa, como também pode se fortalecer criando seu próprio negócio.
AVS – Uma revelação que você faz é relativa ao nome do continente, América. Aprendemos que ele se deve ao navegador Américo Vespúcio. Você diz que o nome verdadeiro dele é Alberico e que o nome América vem da língua guarani.
Maria Lúcia – Isso o personagem trouxe de um artigo publicado na Revista da Escola de Comércio, [naquele pós-guerra em Assunção].
AVS – Uma outra questão que você e seu personagem propõem se relaciona com a maçonaria, com a importância que ela teve na história da América.
Maria Lúcia – Os maçons, pelo que eu pude entender, são um grupo de desenvolvimento humano, que teve forte presença nas sociedades, a partir do século 18. A origem da maçonaria é muito antiga, mas essa presença se dá a partir do século 18 e vários líderes passaram por organizações maçônicas. É importante a maçonaria, não só porque o Jorge López da Costa Moreira era da maçonaria. Mas sua presença tão intensa na vida social e esse seu esforço em ajudar a reconstruir o Paraguai também tem a ver com os ideais dele, que eram fortemente influenciados pela maçonaria. Mas a maçonaria tinha pessoas de diferentes inclinações. Foi um espaço onde se propuseram certas mudanças nas sociedades. A luta pelo poder político que aconteceu entre a maçonaria e a Igreja Católica atingia, inclusive, as questões de domínio de terras, de riquezas. E isso vai influenciar toda a organização da sociedade. Essa segunda metade do século 19 foi muito importante para o que vivemos no século 20.
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