Entrevista exclusiva: Jorio Dauster

Embaixador e ex-presidente da Vale do Rio Doce, Jorio defende o “aprimoramento do presidencialismo” brasileiro através da adoção do recall
sexta-feira, 17 de junho de 2016
por Márcio Madeira
(Foto: Divulgação)
(Foto: Divulgação)

Num momento histórico em que o sistema político nacional tem suas vísceras expostas através de delações premiadas, e no qual o alcance das estruturas de corrupção deixa pouco espaço para resquícios de esperança num futuro melhor, A VOZ DA SERRA abre espaço para uma das vozes mais respeitadas do Brasil manifestar, com exclusividade, sua visão a respeito de como nosso modelo político pode ser aprimorado.

Jorio Dauster Magalhães Silva é diplomata, empresário e tradutor. Entre outros cargos que ocupou, foi secretário no consulado do Brasil em Montreal e nas embaixadas em Praga e Londres, presidente do Instituto Brasileiro do Café (1987-1990) e da Companhia Vale do Rio Doce (1999-2001). Em 1991, no governo Collor, participou do comitê de negociação da dívida externa do Brasil, e também foi embaixador do Brasil junto à União Europeia (1991-1998). Atualmente, é consultor de empresas e, como tradutor, trouxe para o português brasileiro obras de autores como J.D. Salinger e Vladimir Nabokov.

A VOZ DA SERRA: O senhor defendeu em artigo recente que o regime parlamentarista apresenta vantagens teóricas inquestionáveis em relação ao presidencialismo. Que vantagens seriam essas?
Jorio Dauster: A principal vantagem a que me referi é que o parlamentarismo é mais flexível, porque permite mudanças de governo sem maiores traumas. Basicamente, ele não deixa a sociedade amarrada a um eventual erro por quatro ou cinco anos, pois admite a possibilidade de antecipar o fim do mandato, também por voto direto, através da chamada Medida de Não Confiança. É uma situação bem diferente de nosso presidencialismo, no qual esse tipo de decisão é indireta, cabe ao Congresso, e possui regras de enorme complexidade. Por outro lado é crucial observar que, nos países em que o parlamentarismo funciona, o número de partidos políticos é bem menor do que no Brasil. Neles a população vota no partido, numa plataforma doutrinária bem estabelecida, ao passo que aqui vivemos um momento de fragmentação e descaracterização dos partidos políticos, cujos programas quase ninguém conhece de maneira mais aprofundada. É evidente, portanto, que o parlamentarismo só poderia funcionar no Brasil caso houvesse, preliminarmente, a redução do número de partidos para algo em torno de quatro ou cinco, num processo que conferisse identidade doutrinária a cada um deles segundo as velhas e incontornáveis noções de direita, centro e esquerda. Sem essa correção prévia a inibir o sistema de coalizões, que funciona como um verdadeiro balcão de negócios, a mudança de regime daria origem a uma instabilidade absoluta, na qual qualquer primeiro-ministro poderia ter vida mais breve que uma flor.

Diante das dificuldades que o senhor acaba de listar, seus artigos têm defendido aquilo que o senhor define como um aprimoramento do presidencialismo brasileiro, através, entre outras medidas, da retomada do conceito de recall político, ou referendo revocatório. No entanto, levando em consideração o cenário descrito, e acrescentando a ele o papel desempenhado por marqueteiros nem sempre preocupados em prometer apenas aquilo que se pode cumprir, esta ferramenta de afastamento de governantes através do voto popular não poderia gerar o mesmo efeito de instabilidade governamental?
Na verdade esse risco existe em qualquer sistema político, mas é por isso que venho defendendo diversas medidas paralelas, como colocar fim às coligações partidárias, dificultar as trocas de partido por parlamentares, garantir que as eleição não mais sejam conspurcadas pelo financiamento empresarial de campanha, e também estabelecer que o recall só possa ser utilizado uma vez por mandado e nunca durante o primeiro ano, quando geralmente são levadas adiante as medidas mais impopulares da administração. Hoje existem empresas no Brasil especializadas em criar partidos. Até 2005 havia um número pequeno de siglas, mas em 2006 o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucional a cláusula de barreira, acatando por unanimidade o voto do ministro-relator Marco Aurélio Mello, e abriu as porteiras para a esculhambação. Partidos que tinham fumaças doutrinárias tiveram que se render às coalizões. O PT, por exemplo, foi viciado por esse sistema, que tem no financiamento de campanhas sua metástase. São centenas de milhões de reais gastos em campanhas, através da mais vil exploração da coisa pública. A mera proibição, contudo, pode reforçar o caixa 2, então é preciso buscar meios de efetivamente impedir o financiamento. Temos que acabar com o fingimento. Ninguém perguntou, por exemplo, de onde vieram os R$ 200 milhões das doações declaradas. Ora, esses financiamentos só existem porque se tornaram um dos melhores negócios da república. É preciso deixar de fingir, acabar com o joguinho. O poder dos marqueteiros precisa ser reduzido, e a adoção do recall é uma maneira de responsabilizar por promessas não cumpridas, uma forma de estimular uma politização mais saudável. A instabilidade não iria aumentar, até porque a preparação para este tipo de consulta popular iria demorar algo entre seis e sete meses, e também porque existem vários tipos de recall. Cabe, obviamente, uma discussão aprofundada para discutir qual deles seria o mais apropriado à nossa condição. Ademais, se nós olharmos para nosso passado recente veremos que o PT apresentou 50 propostas de impeachment para quatro presidentes que o antecederam. Da mesma forma, nada impede que outros processos de impeachment da presidente Dilma Rousseff sejam apresentados em seguida, caso o Senado entenda que este que está em curso deva ser arquivado.

O senhor não acha, no entanto, que eventualmente medidas impopulares podem vir a ser necessárias, e que a sombra do recall poderia fazer com que governantes passassem a administrar de forma populista, encarando todos os anos como se fossem eleitorais, sob pena de terem seus mandatos encurtados pela própria população?
A questão central é que todas as medidas impopulares deveriam ser anunciadas abertamente já durante as campanhas, num diálogo franco com o eleitor, sem falsas promessas. A previdência é um bom exemplo disso. ‘Olha, se não forem feitas as reformas necessárias ela vai quebrar’. O estado precisa se financiar, dinheiro não cai do céu. Isso tem que ser dito abertamente por todos os candidatos, porque o que gera impopularidade é justamente a tradição de prometer e não cumprir. Ainda assim, minha proposta é de que o recall não possa ser acionado durante o primeiro ano de mandato, justamente para que os governantes tenham o respaldo necessário para levar adiante políticas públicas eventualmente necessárias, mas impopulares.

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