Entre provas e provações

quarta-feira, 21 de novembro de 2012
por Jornal A Voz da Serra
Entre provas e provações
Entre provas e provações

Maurício Siaines
Os acontecimentos da madrugada de 12 de janeiro de 2011 estão gravados na memória dos friburguenses. Ao mesmo tempo, a tragédia passou a ser lembrada também em qualquer parte do Brasil quando um viajante se diz originário de Nova Friburgo. Desde aquele dia, são inúmeras as histórias contadas e recontadas da vivência de horror provocada pelas chuvas, pelos deslizamentos de terra e pelos desmoronamentos de construções.
Logo no início daquela madrugada, equipe do Corpo de Bombeiros foi surpreendida no centro da cidade pela violência dos deslizamentos: três bombeiros morreram e outros ficaram feridos enquanto tentavam resgatar vítimas. Entre estes últimos estava o sargento Américo Machado Correia, nascido em 1984 em Nova Friburgo, desde 2008 na corporação.
Um ano e oito meses depois, Américo compunha outra equipe submetida a outro tipo de prova em Sydney, na Austrália: desta vez, uma competição esportiva em que se comparavam as capacidades de operação de bombeiros de todo o mundo, o Toughest Firefighter Alive (TFA), literalmente Bombeiro mais Resistente Vivo. Trata-se de prova dos World Firefighters Games, Jogos Mundiais de Bombeiros, espécie de olimpíada entre bombeiros, disputada de dois em dois anos. Modalidades esportivas comuns fazem parte da competição, além daquela específica de habilidades profissionais. Equipe do estado do Rio de Janeiro conquistou quatro medalhas, sendo uma de ouro, nesses jogos realizados entre 19 e 28 de outubro. Américo deu entrevista a A VOZ DA SERRA, na quarta-feira, 14 de novembro, no quartel do Corpo de Bombeiros de Nova Friburgo, falando de suas experiências. Abaixo, trechos dessa conversa.


A VOZ DA SERRA – Fale um pouco dessa competição na Austrália.
Américo Machado Correia – Essa modalidade em que competi, compondo uma equipe de oito, é a TFA [Bombeiro mais Resistente Vivo, na sigla em inglês]. Esses jogos servem também para podermos conhecermos bombeiros de outros países, o que é interessante.
Essa modalidade é a que mais se aproxima de nossa prática, que envolve maleabilidade com mangueiras, transposição de obstáculos, carregamento de vítima, de material, subir lances de escadas e subir em andares. Em todas essas etapas estamos equipados, com a roupa de aproximação [para incêndios], capacete e todo o equipamento que costumamos usar. É uma modalidade muito exaustiva por causa do peso da roupa, do calor e da freneticidade da competição propriamente. São quatro etapas com um intervalo de descanso mínimo entre uma e outra ... é preciso um preparo físico muito bom, aliado a uma técnica também muito boa. 
Na primeira etapa, é preciso arrastar 90 metros de mangueiras de duas polegadas e meia, que são bem pesadas. Pega-se a mangueira, joga-se sobre os ombros e corre-se até desenvolvê-las todas. Depois, há duas mangueiras de 30 metros para se enrolar e guardar em determinado local. Feito isto, o cronômetro para e dez minutos depois tem-se que realizar outra prova. Caso se tenha levado, por exemplo, dois minutos para concluir essa prova, será preciso iniciar a segunda prova oito minutos depois. Quanto mais rápido se realizar a prova, mais se vai descansar. Na segunda prova, é preciso deslocar um metal sobre um trilho a marretadas por 1,5 metro, depois, pega-se um galão de 22 kg com um líquido, passa-se por um túnel, deixa-se o galão e pula-se um muro de 3m, pega-se uma vítima – um boneco – de aproximadamente 80 kg e a desloca por 90 metros. 
Todo mundo fez todas essas etapas e houve o revezamento, em que nos saímos muito bem. Terminada essa etapa, se for cumprida em quatro minutos, descansa-se por seis minutos. Na terceira prova pegam-se duas escadas que são levadas até um local determinado, um galão de 22 kg, sobe-se até o terceiro andar, puxa-se uma mangueira por uma corda, desce-se com o galão, que é colocado em local determinado, vai-se até um esguicho, pega-se seu requinte [peça metálica dotada de rosca] que é conectado, terminando a prova. A última prova é somente subida de 18 andares. O detalhe é que em todas essas provas estamos equipados, com capacete, roupa de aproximação, coturno, cilindro [de ar comprimido]. Quando fui fazer, cheguei lá em cima com dores de cabeça, passei mal.

AVS – Como se formou a equipe?
Américo – Tivemos uma prova classificatória [entre os bombeiros do estado do Rio], que definiu os oito primeiros colocados. Era uma prova muito parecida com a que realizamos lá [na Austrália]. Fiquei em segundo lugar entre esses oito que foram competir.

AVS – E a equipe conquistou quatro medalhas, sendo uma de ouro.
Américo – Exatamente. Foi um amigo, Alexandre Fernandes, do quartel Humaitá, no Rio de Janeiro, que tem muita disposição e muita garra, que ficou em primeiro lugar em sua categoria e em segundo no geral. É uma pessoa que com certeza vai muito longe. Ele ficou em primeiro lugar [na seleção interna dos bombeiros para participar dos jogos] e eu fiquei em segundo. Nosso quartel [de Nova Friburgo] é campeão dessas provas profissionais, com todas as modalidades que envolvem nossa profissão.

AVS – E houve a participação na Austrália de outros bombeiros de outras partes do Brasil?
Américo – Só os de Brasília, que já têm uma bagagem maior. Houve bombeiros de São Paulo e de Goiás, que competiram em ciclismo, natação, meia-maratona, futebol ... atividades menos voltadas para nossa profissão.

AVS – E ganhar essa competição valoriza a equipe do Corpo de Bombeiros do estado?
Américo – Com certeza. O pessoal daqui do quartel está muito empolgado, tanto com nossa vitória nas provas profissionais [classificatórias para o evento de Sydney] – que permite dizermos que o quartel de Nova Friburgo é o melhor do estado –, quanto com nossa atuação, dos bombeiros do Rio de Janeiro, lá fora, que foi muito boa, acima de nossas expectativas. Foi a primeira vez que fomos competir e já viemos com medalhas. Isso ajuda a todos nós, pois sabemos que temos pessoas capazes de representar muito bem a corporação, onde quer que seja.

AVS – Vocês, bombeiros de Nova Friburgo, passaram por provas muito difíceis durante a tragédia climática de 2011 e certamente ficaram de prontidão para outras. Você acredita que esta realidade, esse jogo para valer, de vida e morte os tenha condicionado melhor, inclusive para disputar esses jogos?
Américo – Talvez não. Porque nossa atividade, não tão divulgada como naqueles momentos das catástrofes do ano passado, nos leva a estar sempre aprimorando nossas aptidões. Temos sempre treinamento no quartel ...

AVS – Deste quartel são atendidos outras localidades além de Nova Friburgo?
Américo – Só Nova Friburgo. Em Cachoeiras de Macacu há um destacamento, que pertence ao grupamento de Nova Friburgo; em Bom Jardim, Cordeiro e Cantagalo, também. São destacamentos que fazem parte do 6º Grupamento de Bombeiros [centralizado em Nova Friburgo]. Há trabalhos, em toda essa área, que é muito grande, não muito divulgados, como cortes de árvores, fogo em vegetação, atividade muito cansativa, que exige que se suba morros, uso de abafadores, esticar linhas de mangueiras, que são muito pesadas. Sempre se está em movimento e a aptidão física, assim como a técnica, é muito exigida sempre.
É claro que as chuvas do ano passado foram algo fora do normal, não esperávamos que fosse acontecer e realmente exigiu muito de cada um. Mas não foi só isto [que nos condicionou a disputar com êxito os jogos de Sydney], temos constante trabalho e prontos para fazer o que for necessário para atender a todas as ocorrências.

AVS – Como você, particularmente, vivenciou a tragédia de 2011?
Américo – Fui vítima daquele desabamento em que faleceram nossos três amigos do Corpo de Bombeiros. Estava de serviço no dia, estava naquele local e por pouco não fui também vitimado, na Rua Luís Spinelli, naquela esquina. Estava dentro da casa tentando tirar duas pessoas, quando veio o deslizamento e tivemos que sair do local, a avalanche nos atingiu e nos jogou longe, foi tudo muito repentino. Fiquei 22 dias em recuperação. Tudo isso é muito recente ... 

AVS – Foi uma grande provação. É a profissão de vocês, que são treinados, mas estar ali, cara a cara com a morte, não é uma coisa muito fácil, mesmo com toda preparação.
Américo – Passa rápido muita coisa na cabeça. Quando estava sendo arremessado e arrastado pela lama passou um flash das coisas que vão ficar para trás, porque não sabia que sobreviveria. É muito ruim.

AVS – É muito diferente da prova esportiva e do treinamento.
Américo – É, nessas também se chega ao limite, mas sabe-se que uma hora aquilo vai acabar, aquele cansaço e a dor de cabeça vão passar. Estávamos sendo testados mas o teste maior éramos nós mesmo que fazíamos por estar querendo fazer o melhor, é uma sensação ruim que se sabe que vai passar.

AVS – O que o motivou a escolher a carreira de bombeiro?
Américo – Desde pequeno tinha essa vontade de ser bombeiro. Quando criança, admirava os bombeiros. Então, já tinha essa predisposição. Trabalhava dez horas por dia no comércio, depois ia para o curso e ficava estudando até altas horas para fazer o concurso [para o Corpo de Bombeiros]. 

AVS – Você saberia dizer por quê?
Américo – Eu gosto muito de ajudar as pessoas. Acho que isso me ajudou a vir para cá e saber como ajudar as pessoas, principalmente em casos em que outras pessoas não poderiam. Estou capacitado, tenho os materiais necessários para salvar uma vida ... acho que essa vontade me mobilizou muito, gosto muito de estar aqui e aprender a fazer isso cada vez melhor.

AVS – E você tem outra atividade?
Américo – Não. Pelo menos por enquanto, dedico-me só ao Corpo de Bombeiros.

AVS – E não tem a intenção de fazer também outra coisa?
Américo – Gosto muito da educação física, tenho vontade de vir a me especializar nisto, fazer um curso universitário.

AVS – Você, nascido e criado em Nova Friburgo, como pensa que as marcas da tragédia de 2011 podem ser superadas?
Américo – Acho que ainda não nos recuperamos porque, a toda chuva, um pouco mais forte ou mais demorada que venha, já nos remetemos a esse passado recente. Psicologicamente, ainda não estamos curados, é tudo muito recente.

AVS – Você tem essa inclinação solidária que o leva a querer ajudar as outras pessoas, mas vivemos em uma época de muito individualismo, em que o grande valor é o sujeito se dar bem. Como você vive essa contradição?
Américo – É difícil ver esse pensamento [solidário] generalizado entre as pessoas. Quando é preciso as pessoas se ajudarem umas às outras, ainda se vê um pouco de solidariedade. Mas tínhamos que ter isto mais presente em nossas vidas, em nosso dia a dia. Isto falta um pouco. Se conseguirmos fazer um pouquinho pelo próximo, já melhora bastante.

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