Maurício Siaines
Autora de diversas músicas que se tornaram famosas nas interpretações de Ney Matogrosso, Luhli fez carreira como compositora e cantora paralelamente a todos os esquemas comerciais que envolveram a produção cultural desde a década de 70, quando lançou, junto com sua parceira, Lucina, o disco independente, Luli & Lucinha, cuja história envolve inúmeras peripécias.
De uma família originária do bairro de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, Heloísa Orosco Borges da Fonseca, conhecida por Luhli, apelido que lhe acompanha desde a infância, nasceu em 19 de junho de 1945.
Com um repertório de mais de 900 músicas, resultado de um vigor criativo fora do comum, Luhli mora hoje a meio caminho entre Mury e Lumiar, este último, local para onde pretende se transferir em breve. Tendo vivido o que foi chamado de contracultura, enfrentou os desafios que essa opção significava, não só em termos de carreira artística, como também no que diz respeito à vida diária. O Vira talvez seja sua música mais conhecida, seguida de Fala e Bandolero.
O bate-papo com Lulhi durou algumas horas e é sintetizado aqui.
A VOZ DA SERRA - Fale um pouco de sua trajetória de vida, do modo como você se tornou compositora e cantora.
Luhli - A mais nova de quatro irmãs, eu sempre fui a diferentóide. Sempre fui muito asmática. Assim, o meu brinquedo, o meu consolo, desde os sete anos de idade, foi o violão. Minha irmã mais velha me ensinou os primeiros acordes. E eu era tão pequena, tão mirrada, que ficava sentada no sofá com o cabo do violão no colo... eu tocava no cabo do violão! Até que um dia, uma amiga da família, que tinha me visto tocar, me deu de presente um violão pequeno. E eu até dormia abraçada com esse violãozinho. Uma vez, com 13 anos, eu pirei ouvindo um cara cantar uma música no rádio. Era Desafinado, com o João Gilberto. Aí eu ficava mexendo no dial até achar aquela música. E também Chega de saudade. Eu fiquei enlouquecida com a bossa nova. Comprei aquele disco do João Gilberto. Eu ficava tentando tirar os acordes que ele fazia.
AVS - E aí vieram os anos 60. Que alterações esse novo tempo trouxe?
Luhli - Com a doença do meu pai, eu e minhas irmãs precisamos trabalhar. Eu dava aulas de violão, era o que eu sabia fazer. Fui estudar na Esdi [Escola Superior de Desenho Industrial, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Uerj] e tenho o curso completo de artista gráfica. Nunca fiz curso de música, mas a minha garagem, onde eu dava as aulas, passou a ser ponto de reunião. Eu comecei a ensinar aquela batidinha da bossa nova para as pessoas. Muita gente que hoje é famosa aprendeu a batidinha da bossa nova comigo. Eu fiquei tão importante naquele momento, que a Philips me chamou para fazer um disco, e me fez assinar um contrato, mesmo com a cláusula que meus pais me impuseram, de que eu não faria televisão, nem divulgação em rádio. Eu tinha 18 anos e esse disco foi tão traumatizante que eu parei de cantar por sete anos. Era um disco de sambas de protesto anterior à revolução de 64. Eu fiquei de tal maneira desencantada que eu não cantava nem Parabéns em festa de aniversário. Passei a me dedicar ao visual, às artes gráficas. Trabalhava junto com meu namorado [Luiz Fernando Borges da Fonseca], que depois se tornou meu marido, que fazia fotografia. Fizemos muita capa de livro, muita logomarca. Eu fazia a concepção gráfica e ele a parte fotográfica. Fui para São Paulo, em 1970, acompanhando meu marido, que foi fazer parte de uma equipe de filmagem. Eu ficaria num quarto de hotel sozinha, esperando. Mas havia uma das pessoas da filmagem que tinha uma boate, próximo ao hotel, que tinha música ao vivo, e eu comecei a cantar nessa boate, onde conheci o João Ricardo, então um jovem português, que tinha um grupo chamado Secos & Molhados. Ele tinha uma ideia muito boa para fazer um disco e eu me tornei parceira dele. Nessa época eu fiz as letras de O Vira e Fala e mais outras... foram oito músicas. Depois eu voltei para o Rio e, um mês depois, em agosto, apareceu a Lucina. Tinha 25 anos e estava morando em um casarão em Santa Teresa, quando começava a época hippie. Naquele momento, acontecia uma revolução na maneira de viver, com novos hábitos e comidas, roupas, cabelos, todas aquelas coisas. Comecei a compor com a Lucina e surgiu aí uma parceria de uma beleza que eu nunca tinha visto. Nessa época, fomos morar em uma casinha no morro do Vidigal, onde moravam muitos artistas, como Gal e Mautner. Ali eu fiquei grávida e tive minhas duas filhas. Era violão o tempo todo, muita alegria o tempo todo, era muito bom. Minha filha mais velha nasceu exatamente quando estourou o Secos & Molhados. Eu tinha apresentado o Ney [Matogrosso], que era meu amigo, ao João Ricardo e eles conseguiram gravar o disco, que tinha músicas minhas. Eu peguei meu primeiro dinheiro de direitos autorais grávida de seis meses, algo assim como uns 50 mil reais hoje. Nós queríamos fazer uma viagem e eu sabia que, depois de minha filha nascer, eu não conseguiria. Então, comprei uma passagem para mim, para a Lucina e para o Luiz em um navio que ia até Manaus e voltava, passando por todos os portos. Depois, nós fomos morar em um sítio, perto da entrada da baía de Sepetiba.
AVS - Você viveu, então, todo aquele movimento que foi chamado de contracultura. Como foi isso?
Luhli - Quando eu era adolescente, apareceu no Rio de Janeiro uma gravadora chamada Elenco, que despejou toda a produção da bossa nova, que era o que estava acontecendo de importante. Existia, então, uma estrutura de mídia para desaguar a produção verdadeira do que estava acontecendo musicalmente. Depois da Revolução [o Golpe Militar de 1964], com a mordaça cultural, que durou mais de 20 anos de total lavagem cerebral, a mídia se dedicou a tudo que não fosse inteligente, que não fosse verdadeiro, que não fosse expressão do povo, tudo que fosse anestesiante, emburrecedor, imbecilizante, de modismo vulgar, tudo que não despertasse a consciência, tudo que fosse anestesia da consciência. Era uma época em que tudo que se fazia tinha que passar na censura, a mordaça era terrível e muitos amigos foram presos. A mídia se dedicou a isso e nisso está até hoje. Aquela mídia que divulgava o que existia acabou. Então, cada vez mais, a mídia foi se separando da verdade criativa do povo e abandonando aquela forma de fazer música, que era a forma brasileira, a verdadeira canção brasileira, que muitos acham que morreu. Houve uma guinada na música brasileira e, hoje em dia, o que está eleito como arte e é oferecido ao povo é o que é ruim, e aquilo que é bom não tem espaço. Por isso é que essa revolução hippie foi importante para libertar as coisas verdadeiras. Então, a cultura virou contracultura.
Reconstrução
“Eu fiz dois grandes investimentos em minha vida: meu casamento e a dupla. Meu marido morreu em 1990; a dupla acabou tempos depois. Eu me vi coroa, sem dinheiro e sem nada. Aí comecei tudo de novo. Eu sou muito fênix, eu morro e renasço. Agora, por exemplo, estou renascendo outra vez. Estou entrando em novo ciclo da minha vida e, se Deus quiser, vai ser de expansão profissional. Vou fazer agora, em julho, um trabalho para o Sesc e vou ganhar dinheiro suficiente para dar uma boa injeção no site de repertório com minhas composições. A mídia só quer gente jovem, não quer gente mais velha. Hoje em dia, cada vez mais, mídia é uma coisa, e arte é outra. São coisas que quase não se encontram mais, estão indo para lados diferentes. Infelizmente, a situação é esta. A grande saída para nós, a grande saída para a canção brasileira, a grande saída para quem está fazendo um trabalho bonito é a internet. A mídia já era. E a comunicação que eu tenho, tocando, esta ninguém acaba. Ela vai sobreviver. Os tempos vão mudar e o menestrel vai estar aí. E este é o meu caminho. E a internet vai ser como a Kombi daquele tempo do início da produção independente.”
A produção independente
“Quando nós fomos morar no sítio, ficávamos compondo, tocando para as árvores. Até que a Lucina ganhou uma herança, que usamos para gravar um disco independente. Compramos uma Kombi, arrumamos igual a uma casinha, com cortininha, uns gavetões para guardar as coisas, e saímos Brasil afora. Tínhamos uma tenda, em que fazíamos o show e depois vendíamos o disco. Vendemos assim muitos discos mão a mão. Nessa história nós fomos pioneiras, fomos pioneiras na produção independente no Brasil. Primeiro gravamos o disco só com voz e violão e, depois, convidamos outros artistas para gravarem em cima em estúdio. Colhemos, assim, algumas pérolas de criatividade espontânea. Esse disco é considerado, hoje em dia, uma joia cult. Querem lançá-lo de novo no Japão. Um exemplar do original está custando agora mais de 200 reais. O disco saiu com o título de Luli & Lucinha [em 1979].”
O vira
(João Ricardo e Luhli)
O gato preto cruzou a estrada,
Passou por debaixo da escada ...
E lá no fundo azul, na noite da floresta,
A lua iluminou a dança, a roda, a festa.
Vira, vira, vira
Vira, vira, vira homem, vira, vira,
Vira, vira lobisomem
Bailam corujas e pirilampos
Entre os sacis e as fadas ...
E lá no fundo azul, na noite da floresta,
A lua iluminou a dança, a roda, a festa.
Vira, vira, vira!
Vira, vira, vira homem, vira, vira,
Vira, vira lobisomem.
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