Sem reclamações, por favor. Sem revirar os olhos, culpar o mundo, cobrar da vida. Precisamos descobrir poesia nas mínimas coisas, beleza no óbvio, prazer no igual, desatando esses nós a que nos acostumamos ou inventamos para a vida da qual somos donos.
Voltar às aulas é retomar a rotina. E não há nada de chato na rotina porque somos donos da nossa história. Criamos rotinas. São nossas as rotinas. Não me venham com a desculpa de que a rotina nos é imposta. Não. Aceitamos ou não. Se quisermos, inventamos.
Me lembro que nessa época do ano voltar às aulas tinha sabor de descobertas. A começar pela lista de material, recheada de novidades. Livros novos eram novos mundos que se abriam. E o perfume delicioso de papel impresso enebriava. Caderno novo, então... uhm... linhas livres, sem manuscritos. No fundo branco, a possibilidade de enchê-las de letras treinadas no caderno de pauta dupla, caprichosamente... desenhadas com afinco e alegria. Encapar cadernos e livros era uma festa. Eu e meus irmãos em volta da mesa, o olhar vigilante da nossa mãe, o durex que circulava para atender a todos e esmero para que, ao fechar, a capa do livro não se dobrasse. Esticadinho, sem rugas ou dobras. Livre de pressão. Protegido suavemente, mas livre. Como todos gostamos que a vida seja.
Voltar às aulas era a possibilidade de novos amigos. Gente nova na escola. E também saber que um ou outro colega não estaria mais ali. Seguiu. Para outra escola. Outra cidade. Ou apenas deu uma pausa na vida escolar repetindo o ano e ficando pra trás.
Repetir o ano é uma mentira. Ano não se repete, assim como não existe chatice na rotina. Como dizem os versos de Elisa Lucinda : "Parece, mas não se repete/não pode repetir/é impossível/o ser é outro/o dia é outro/a hora é outra/e ninguém é tão exato”.
Voltar das férias e encarar a vida que precisa seguir em frente parece tédio, eu sei. Mas podemos reinventar. Mudar o percurso para os mesmos lugares, descobrindo no entorno novas paisagens, traços e olhares. Podemos arriscar atitudes. Declarar o que não foi dito no ano passado. Ser diferente diante do igual.
Acordar, tomar banho, café, vestir o uniforme, ir para a escola, estudar, fazer dever, seguir para o inglês, academia... Acordar, tomar banho, café, vestir-se, levar filhos pra escola, ir para o trabalho, almoçar, pagar contas, buscar filhos na escola, levar para o inglês, para o balé, cuidar da casa, preparar o jantar, pensar no dia seguinte e ser patrulhado pelos ponteiros do relógio, pode ser divertido, agradável e até prazeroso. Creiam. Porque as rotinas podem ser reinventadas, quebradas, bem vividas, porque são sempre escolhidas. E se reclamamos é porque temos preguiça de fazer diferente.
Mas se de tudo não conseguirmos mudar. Não tivermos disponibilidade à criatividade, podemos exercitar rotinas trabalhando a poesia que está à nossa volta e que nos são imperceptíveis às vezes, mas que nos seduzem e encantam.
Para voltar às aulas com prazer e alegria, retomar as rotinas, das quais reclamamos tanto, com intensidade e bom humor, basta viver a vida no dia a dia, observando que as quatro estações são calendários que se cumprem. Luas novas, minguantes, crescentes e cheias, que transbordam nossas noites de poesia, são também rotinas. Mares, céus, horizontes, chuvas e ventos também são e se repetem. Como o sagrado amanhecer que rompe os nossos dias sempre em espetáculo inédito aos nossos olhos.
E então descobriremos que é possível fazer diferente aquilo a que chamamos rotina. A cada dia. Mas é preciso começar hoje, pro dia nascer feliz!
Deixe o seu comentário