A quarta-feira de cinzas nasce do ritual que celebrava a fartura, desde os primórdios da humanidade. Abastecidos os estoques de alimentos e embutidos, famílias de camponeses festejavam em suas aldeias a certeza de dias tranquilos que antecediam o rigoroso inverno. Era tempo não só de fartura, mas, também, de fecundidade.
Ao fim das celebrações, recolhiam as sobras e restos, os trapos das fantasias, as bautas (máscaras) e tudo mais que não servia em suas casas, e acendiam enormes fogueiras, deixando para trás os sentimentos menores, mágoas, erros, arrependimentos, exageros, ressentimentos e vinganças.
Segundos estudiosos, a cinza, por sua leveza, é figura das coisas que se acabam e desaparecem. É usada como um sinal de penitência e de luto. Ainda, culturalmente, como símbolo do reconhecimento de que somos pecadores e somos desejosos em mudar.
Quando a Igreja estabelece o período carnavalesco nos três dias que antecedem a Quarta-feira de Cinzas, em 1582, e o Papa Gregório XIII reformula o calendário Juliano e cria o Gregoriano, em vigor até hoje, Carnaval e Quaresma ganham simbologia oficial.
Com o passar dos anos, a Quaresma transforma-se em tempo forte na caminhada do ano eclesiástico para os cristãos, como um apelo para o silêncio, a prece e a conversão, bem diferente do que encontramos em registros do século XVI, em que era tratada como tempo de medo, de cachorro zangado e de mula sem cabeça.
É a caminhada para o mistério da Páscoa. Tempo de renascer. Renovar. Mudar.
Ainda que esse mundo veloz nos distancie cada vez mais das reflexões sobre o calendário que vivemos e muitos discordem de tudo, fundamentados ou não, ou simplesmente porque discordar virou sinônimo de intelectualidade, penso que uma pausa na vida pode mudar tudo em nós. Cinco minutos, quinze, meia hora que seja. Pausa para nos repensarmos enquanto tripulantes dessa viagem coletiva.
Quem somos? Quem estamos sendo? Quem gostaríamos de ser?
Tenho me cobrado muito para refletir sempre a respeito do outro. O outro que está ao nosso lado e quase nunca percebemos. De que adianta existirmos sem notarmos os que estão à nossa volta. Seremos para quem?
As cinzas são possíveis todos os dias. E a Quaresma é também possível em nós em frações de segundos. Afinal, Deus está interessado em nossos corações e não que simplesmente cumpramos rituais.
Experimentar-se antes de ser. Se escutar antes de falar. Refletir-se e não só culpar. São exercícios fáceis para nos tornarmos melhores.
Quando mudamos, acrescentamos novos tópicos à nossa biografia. Como se deixássemos de ser aquele personagem já desinteressante, sem graça, cansativo e repetitivo, para dar lugar a alguém capaz de perceber as mínimas coisas existentes no mundo e que faz a nossa vida cada vez mais vibrante e colorida.
Quando mudamos, renascemos. E renascer é o milagre diário que deixamos passar repetidas vezes, sem nos darmos conta de que é só isso que nos falta.
E como disse o poeta Gonzaguinha na canção que, como uma catarse, entoamos com sorrisos e coração aberto: "Há quem fale que a vida da gente é um nada no mundo. É uma gota, é um tempo, que nem dá um segundo. Há quem fale que é um divino mistério profundo. É o sopro do Criador numa atitude repleta de amor.”
Uma feliz Quaresma para todos nós!
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