Maurício Siaines
Renato Côrtes Teixeira nasceu em Nova Friburgo em fevereiro de 1949, na Praça do Suspiro, e sempre viveu na cidade, exceto quando cursou a graduação em economia na Universidade Federal Fluminense (UFF), a partir de 1972. Sua família é proprietária do Colégio Modelo, desde 1919. Atualmente, Renato e suas irmãs dividem as responsabilidades da direção do colégio. Além disso, fez mestrado em economia, também na UFF, defendendo dissertação em 2004 com o título A formação do polo de confecção de moda íntima em Nova Friburgo, e é professor na Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia e na Universidade Candido Mendes, campus Nova Friburgo.
Renato participou do filme Geração Bendita, de 1971, o primeiro filme hippie do Brasil, feito em Nova Friburgo. Deu entrevista a A VOZ DA SERRA, na quarta-feira, 11 de maio, apresentando suas reflexões sobre a história econômica recente de Nova Friburgo e sobre os abalos causados pelas chuvas de janeiro na cidade, além de contar histórias e vivências suas e de sua família, entre estas, a participação de seu avô, Carlos Côrtes, na Revolução de 1930, que derrubou a chamada república do café com leite e reflexões sobre a economia da moda íntima de Nova Friburgo.
A VOZ DA SERRA – Vamos começar falando de sua dissertação de mestrado, que trata de um tema quase que inesgotável, podendo ser abordado sob diversos ângulos.
Renato Côrtes Teixeira – Em relação à industrialização de Nova Friburgo, bebi na fonte do João Raimundo [de Araújo], principalmente, e tento explicar, pensando em [Karl] Marx, o fato de que, na crise dos anos 1980, aqui em Nova Friburgo, o setor têxtil foi o primeiro a dançar, mas, ao mesmo tempo, a mão de obra do setor foi absorvida por um processo pré-capitalista, em que há a autoexploração no processo de acumulação de capital, com as costureiras passando os sábados e os domingos trabalhando, sem desfrutar de nada, reinvestindo em novas máquinas e acumulando o capital. Esse processo de acumulação primitiva, no aspecto econômico, é que favoreceu o aparecimento do polo [da moda íntima].
Havia a autoexploração e houve um empresário, Sílvio Montechiari — que é o homem mais rico de Friburgo, hoje. Ele vislumbrou que poderia fornecer a matéria-prima e emprestar a máquina. A Triumph mandou 800 pessoas embora e essas mulheres, para sobreviver começaram a produção caseira e encontraram [em Sílvio Montechiari] o financiador do processo. Ele adquiriu as máquinas antigas da Filó e emprestou-as às costureiras, ou financiou a perder de vista. E o que ele queria era fidelizar esse pessoal. Quando o entrevistei, em 1998, ele disse que tinha mais de cem máquinas que não sabia nem onde estavam. Assim, era o único que abastecia as confecções. As costureiras que iniciaram o polo, até mesmo por gratidão, compravam com ele a matéria-prima. Logo no início, era o elastano, um tecido parecido com a lycra produzido pela Filó.
Já existia uma cadeia produtiva em Nova Friburgo. Já tínhamos o tecido, que era o elastano — que depois viria a ser substituído pela lycra —, tínhamos a fábrica de elásticos — a Sinimbu fazia elásticos —, tínhamos o acabamento, feito pela Sinimbu e pela [Fábrica de] Rendas [Arp].
Todo o acabamento, toda a matéria-prima, todos os insumos e até a tecnologia, porque a máquina já estava presente aqui, tudo isso já existia em Friburgo. E o principal, a mão de obra, foi treinada pela Filó (Triumph). Depois, o marido dessa costureira continuou trabalhando na fábrica, em setores de compra, de venda e de manutenção. E esse marido, vendo que a mulher estava ganhando até mais dinheiro que ele, pediu demissão, com o Fundo de Garantia comprou mais novas máquinas, sempre reinvestindo.
AVS – Já existiam todos os elementos.
Renato – E isto é que é o APL, arranjo produtivo local.
A chegada da Triumph fez as coisas mudarem. Ela chegou em 1968 pretendendo entrar na América Latina pelo Brasil e chegar aos Estados Unidos. Assim, expandiram, trocaram o maquinário todo. Depois [da crise], venderam as máquinas e o Sílvio Montechiari, quando descobriu isto, começou a comprá-las por bom preço, e entregava-as para as costureiras, que já as conheciam, levando as costureiras comprarem a matéria-prima com ele.
E outro elemento importante foi o processo de comercialização, que se deu inicialmente porta a porta, através dos sacoleiros, da informalidade, que criou uma capilaridade na distribuição da produção. Essa capilaridade proporcionou emprego para pessoas que não tinham nada a ver com o setor. Os sacoleiros chegavam na confecção, enchiam o carro e saíam vendendo pelas cidades, as pequenas cidades do estado do Rio, de Minas, do Espírito Santo.
AVS – O sacoleiro foi, então, decisivo para o sucesso do polo de moda íntima.
Renato – Foi, teve um papel importantíssimo porque eles colocaram a produção [no mercado] sem que a grande indústria impusesse dificuldades. Tiveram o papel de criar essa rede capilar, onde não existia um mercado, um local específico para comercializar. Não tinha como a grande indústria mandar fiscais e impedir essa comercialização. Isto permitiu a venda dos produtos. Em qualquer negócio é fundamental concretizar a venda.
O Sílvio Montechiari trouxe o capital, que se valeu do trabalho em regime de autoexploração, pré-capitalista. E tudo foi canalizado para a rede capilar dos sacoleiros.
AVS – E o total dessa produção, existe esse dado, ou é possível estimar esse valor?
Renato – São 800 toneladas de peças de lingerie por mês, isto no final dos anos 90.
AVS – Passando para outro assunto, como foi a experiência de sua família durante a Revolução de 1930?
Renato – Meu avô, Carlos Côrtes, foi um dos líderes da Revolução de 1930 em Nova Friburgo, pegou em armas. Ele tinha fundado o Tiro de Guerra. Ele, um sargento, um cabo e um soldado, no Ford 29 que ele tinha, foram para o Carmo. Depois, se apresentou aos mineiros para combater. Minha avó contava várias histórias, de que o Sanatório [Naval] invadiu o Colégio Modelo. E o médico dela era o doutor Galdo [Galdino do Valle Filho], que representava o governo de Washington Luís, era o civil que mandava na cidade.
AVS – E quantos dias durou isso?
Renato – Meses. Meu avô tinha ido para Minas e, em um período de indefinição, invadiu Carmo, que é quase na divisa com Minas, e tomou a cidade, os pontos estratégicos: a estação de trem, o Correio e a prefeitura. Aqui em Friburgo, o doutor Galdo era o médico da minha avó. Um dia, [durante toda essa história], correu o boato de que o Carlos Côrtes estava em Friburgo, o que provocou a invasão do colégio por militares do Sanatório Naval e minha avó os enfrentou e reclamou com o Galdo, dizendo que seu marido estava em Minas. E aí, o Galdino foi ao Sanatório e disse que não passassem do portão do colégio, que ficassem do lado de fora.
AVS – Então, com a Revolução de 30 houve um grande rearranjo de poder na cidade, não foi?
Renato – Foi. Meu avô se manteve no poder até 1945. Foi nomeado coletor federal na cidade. E isso lhe dava poder sobre os donos das fábricas porque todos tinham que passar por ele por causa do selo. Ele era o homem da Receita Federal, na época. Depois, quando o Getúlio saiu [, em1945,] houve a troca. Mais tarde, nos anos 1950, ele não queria mais nada.
AVS – Você participou do filme Geração Bendita. Fale um pouco dessa época.
Renato – A primeira coisa: nós tínhamos uma carência. Quando falo ‘nós’, estou me referindo à geração do Carlos Bini, que é um pouco mais velho que eu, até a minha. Não tínhamos freios, tínhamos 13 grupos de teatro, tínhamos o Festival de Inverno, que nos fazia entrar em contato com as outras culturas. E existiu um grande centro, que foi o Bar da Galeria. Esse bar era o inconsciente coletivo de Friburgo. Co-habitavam no mesmo ambiente os políticos, o judiciário, porque o fórum era ao lado. Então, na parte da manhã, era o pessoal do café e do lanche. À noite eram os estudantes e alguns notívagos. No fim de semana, éramos nós, que voltávamos das faculdades. Havia, então uma coexistência. Não havia separação, era o pessoal do [Colégio] Modelo, tinha o pessoal do [Colégio] Anchieta. Não havia separação. Tudo ao mesmo tempo e no mesmo espaço. Havia o famoso Saraiva, que era o dono do bar e a dona Maria, sua esposa, que gostavam de nós. Ali foram formuladas várias coisas, vários acordos políticos, várias decisões da Justiça e também muitas brincadeiras. Os grupos de teatro passavam por lá. Para minha época, o fundamental foi o Bar da Galeria.
AVS – E os hippies?
Renato – Havia vários grupos, que acabaram se juntando. Havia o Kiko, que está morando agora na Alemanha, o Sérgio, que tem uma pousada lá em São Pedro da Serra — ele está no filme — o [Carlos] Doadi, que foi para Londres, junto com Jesus. Doadi viveu em dois acampamentos por lá, depois voltou e encontrou o [Carlos] Bini, que já tinha ido para o Rio. E é interessante que em Friburgo tínhamos vários grupos de rock, Os Adolescentes, o Quiabos, o Dois Irmãos. Havia o Tobi, do Quiabos, que fez a trilha sonora do filme. A turma batalhava mesmo.
Bini e outros já tinham feito teatro. O Tião também, o noivo do filme, que faleceu há pouco – enfartou com toda essa tragédia das chuvas. Já havia uma experiência, inclusive em termos de cinema: o Bini já tinha feito um curta, que acho sensacional, que é o Cristo afogado. Nem sei se ele ainda tem alguma cópia, se ele gosta do filme.
AVS – Agora, falando de um assunto mais geral: costuma-se usar a expressão depressão para significar paralisação econômica. Como você vê a relação entre a atividade econômica e o ânimo de uma sociedade, a relação entre a infraestrutura material e as representações que as pessoas fazem da vida?
Renato – Acredito que para o bicho-homem esse processo de depressão econômica provoca efeitos ao contrário. Aí eu entro na dialética do [Karl] Marx, do contraditório, da negação da negação. Em cima dessa negação vai aparecer uma outra coisa. Nos anos 30, o Brasil sofreu os efeitos iniciais de uma depressão econômica, mas as medidas pré-keinesianas — falo assim porque o livro do [John Maynard] Keynes [Teoria geral do emprego, dos juros e do dinheiro] só foi publicado depois, em 1936 —, ou seja, a presença do Estado na economia, como as compras de café realizadas por Getúlio Vargas, significou medidas que viriam a levantar esse ânimo, levando ao aparecimento do novo. Por exemplo, Friburgo atualmente: estou preocupado. O que aconteceu em janeiro está sendo remoído por alguns, enquanto outros já estão pensando em outros caminhos, outras ideias. Vai aparecer alguma coisa, mas o tempo de maturação é muito difícil de se prever, do ponto de vista econômico. Estou achando que a população está ainda meio estática, em choque. Mas, ao mesmo tempo, o fermento já está lançado. Alguma outra coisa vai nascer e eu acredito que seria uma grande oportunidade para que essa coisa nova fosse mais positiva que a do passado, fosse mais igualitária que a do passado. Mas isso é sonho, é ideal. É o meu sonho como friburguense.
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