"É preciso denunciar", diz coordenadora do Centro de Referência da Mulher

“Em briga de marido e mulher, nós temos que nos meter, sim”, afirma Luciana Silva
sábado, 19 de outubro de 2019
por Guilherme Alt (guilherme@avozdaserra.com.br)

No último dia 7, a artista plástica Alessandra Vaz e sua amiga Daniela Mousinho, foram brutalmente assassinadas pelo ex-namorado de Alessandra, Rodrigo Marotti. Foi o primeiro caso de feminicídio em Nova Friburgo. De acordo a Delegacia Especializada no  Atendimento a Mulher (Deam), só este ano já foram registrada 1.018 ocorrências de violência contra a mulher (confira os números ao final desta entrevista). À luz dos recentes acontecimentos um ato de repúdio ao feminicídio foi promovido na tarde deste sexta-feira, 18. A população quer um basta em tanta violência. 

A coordenadora Crem, Luciana Silva, veio ao estúdio de A VOZ DA SERRA para comentar sobre o recente caso que abalou toda a cidade e falar sobre a atuação do órgão. Confira. 

A VOZ DA SERRA: Há quanto tempo existe o Crem em Friburgo?

Luciana Silva: O Crem atua em Friburgo desde 2006 e já atendemos cerca de três mil mulheres. Todas essas mulheres já passaram por algum tipo de violência. É um numero alarmante porém baixo, porque a maior parte das mulheres não registra a violência por vergonha e medo.

Esses números batem com o da Delegacia de Atendimento a Mulher (Deam)?

As pessoas acham que é um erro ou que o sistema não funciona. O sistema funciona, sim. Só que muitas mulheres que fazem uma denúncia na Deam não fazem essa mesma denúncia no Crem e por isso existe uma diferença nos registros. O Crem está a disposição das mulheres, temos um equipe preparada e pronta para prestar ajuda.

 Quais são as ocorrências mais comuns?

As mais comuns são as de violência psicológica, em que o companheiro impõe restrições, grita, xinga e chantageia as mulheres.

Denunciar um ato de agressão é um ato de coragem?

Pode ter certeza que até essa mulher ter a atitude de buscar ajuda, ela já está sofrendo há muito tempo. Nós estamos ali para fazer com que a mulher entenda o que está acontecendo, o que elas podem permitir e o que elas não devem permitir. Nós temos na cidade a Deam – nem toda cidade tem uma unidade dessas – temos a equipe de Guardiões da Vida, da PM, que atua em relação às medidas protetivas e também o Crem, que faz atendimentos diferenciados, voltados para a mulher.

Como é esse atendimento?

É um atendimento que abraça a mulher e permite que ela tenha confiança e se abra mais com a gente. Quando nós fazemos o primeiro atendimento e percebemos a necessidade de ir até a Deam, disponibilizamos um carro para levar essas mulheres diretamente até a unidade. Com isso, temos a certeza de que essa mulher não será desencorajada a fazer a denúncia.

Qual a diferença entre uma discussão normal de um casal e o início da violência verbal?

Existem os desacordos. Todo casal sorri junto, chora junto, discute junto. Nem tudo são flores em um relacionamento. Quando só uma pessoa cede, só uma se torna omissa, isso já é uma violência. Muitas mulheres acham que a violência é só física, mas existe a violência verbal, que é por onde a grande maioria dos casos começa. Quando elas procuram ao Crem, geralmente chegam sem entender o que está acontecendo, o amor por aquele companheiro é muito forte e impede de ver a situação de forma mais clara. Mesmo que não tenha a agressão física, tem o xingamento, o desprezo, a restrição do ir e vir.

 A mulher pode procurar as autoridades quando há a agressão verbal?

Pode, sim. Lá a assistente social vai conversar com a vítima, tomar ciência do caso e detectar os problemas relatados. A ação seguinte é agendar um horário com a psicóloga do Crem. A psicóloga vai ajudar essa mulher a perceber o tipo de violência que ela está sofrendo.

Quais são os sinais dentro de uma relação que podem chamar atenção para um futuro problema?

Precisamos ficar atentas aos sinais que nos são dados todos os dias. Quando uma mulher  se comporta de uma maneira “travada” quando está ao lado do companheiro e se sente mais “relaxada” quando está sem ele, ela precisa perceber que tem uma coisa errada.

O Crem faz um trabalho com os agressores, também?

A Secretaria de Política sobre Drogas atua com os homens agressores a partir do momento em que há a denúncia e uma medida protetiva contra eles. O Crem também faz um trabalho com as crianças.

Na última semana o presidente Jair Bolsonaro vetou um projeto de lei que obrigava hospitais públicos e particulares a notificar os casos suspeitos de violência contra a mulher. Quais consequências podem ocorrer a partir desse veto?

Quando as mulheres sofrem violência física, muitas vezes são levadas ao hospital para ter um atendimento. Se o hospital não puder informar as autoridades que essas mulheres são vítimas de agressão, os números de violência doméstica serão mascarados, o que poderá apontar uma redução nas estatísticas quando na verdade as ocorrências estão aumentando, mas não são registradas. Muitas vítimas chegam ao hospital sem poder andar, falar, desacordadas, entre a vida e a morte. Algumas não recuperam a consciência e morrem. Esse veto nos preocupa muito porque não favorece em nada a mulher.

Como denunciar um agressor?

A mulher tem que fazer a própria denúncia, mas nem sempre ela consegue. Nós estamos falando de relacionamento amoroso, mas muitas vezes é o neto que agride a avó, o filho que agride a mãe, a briga entre vizinhos. Em briga de marido e mulher, entre vizinhos, se alguém pedir ajuda, nós temos que nos meter, sim. É para ligar para polícia ou você será omisso.  A pessoa também pode ir até a Deam ou o Crem que funciona na antiga Rodoviária Leopoldina, ao lado da prefeitura.

 

 A dor de algumas vítimas

Vítima 1: “Eu nunca sofri agressões físicas, exceto alguns beliscões, mas o terror psicológico era gigante. Ouvia xingamentos me rotulando como falsa, dissimulada, merecedora dos chifres que levei, que não o amava, que eu fazia dele ser sua pior versão. Nunca apanhei, mas passei muitas noites em claro com medo de dormir ao lado dele e nunca mais acordar. Chorava quieta com o sentimento de culpa. Ele só era assim porque eu não o amava o suficiente. Família, amigos, cidade pequena, mil motivos me faziam ter certeza que mesmo que ele me batesse eu jamais iria denunciar, eu não conseguiria lidar com a culpa de ter "Destruído a vida dele". Como nossos pais receberiam essa notícia? Hoje eu entendo cada mulher que se cala. Anos se passaram e me livrar da culpa é um processo constante. Ainda me vejo, em algumas conversas, justificando suas atitudes, porque até hoje sinto que tudo seria diferente se eu soubesse amar. Mulheres que vivem hoje um relacionamento controlador, abusivo: saiam, fujam, não se calem, denunciem, a culpa não é de vocês!”

Vítima 2: “Eu estive em um relacionamento abusivo, entre idas e vindas, durante cinco anos. Na época eu não o via como abusivo, porque meu namorado sempre me fazia enxergar  aquilo como um zelo. Começou com pequenas coisas como implicar com a roupa que eu vestia, a cor do batom e depois piorou, o ciúme era excessivo, não podia conversar com meus amigos homens porque era falta de respeito com ele, exigia a senha das minhas redes sociais, vasculhava conversa até com as minhas amigas. Na época, eu abria mão porque achava que ele era inseguro e que não valia a pena comprar a briga. Ele saia escondido, ia pra balada e quando eu descobria me fazia acreditar que a culpa daquilo era minha. Quando queria sumir nos fins de semana, me tratava mal, era grosso, até eu explodir com ele e sair como maluca da história. Das vezes que eu conseguia terminar, ele fazia chantagem emocional, dizendo que iria se matar, que só tinha a mim, que não sabia viver sem mim e que ia mudar. Mudava, mas durante pouco tempo. O ruim dessa história, e acredito que da maioria dos relacionamentos abusivos, é que o abusador cria uma relação de dependência muito forte. Eu nunca sofri abuso físico, mas psicológico sofri vários. Demorei muito tempo para digerir e aceitar que eu estava em um relacionamento abusivo, minhas amigas foram essenciais nesse processo, até eu tomar uma decisão definitiva.”

Vítima 3: “Ele sempre teve atitudes estranhas. Começou com a as agressões Você não pode ir para esses lugares sozinha, Tá igual uma p... com esse batom vermelho… Ficava monitorando meus assuntos com meus amigos e depois nem meus amigos eu podia ver porque na cabeça dele, todos eram mal intencionados e a gente confunde muita coisa com proteção. Tem um episódio que me marcou bastante. Eu fui promovida e estava feliz. Compartilhei a notícia com ele e ele afirmou que eu havia feito sexo oral com meu chefe. Isso aconteceu em um ponto de ônibus. Senti muita vergonha. As humilhações só foram piorando até chegar nas agressões físicas. Eu tinha vergonha de falar com as pessoas sobre o que eu estava vivendo, até por que ele conseguia me vender como louca e, o pior, me fazer acreditar que era merecedora de tudo aquilo. Era digna de violência, humilhação e traição. Eu tentei me matar três vezes. Todo mundo me via como louca, exagerada e ninguém acreditava em mim. Antes que algo pior acontecesse eu decidi sair de casa (moramos juntos por um tempo por que até minha relação com a família eu tinha destruído por ele). Ele me ameaçava, dizendo que eu só sairia de casa numa ambulância depois de levar muita porrada. Tive a certeza que ele me mataria. Saí escondida, com apoio de uma pessoa próxima.  Você que está aí do outro lado, não desista de lutar pela sua vida. Ele pode não ser agressivo sempre, mas pode ser por cinco minutos e te matar. Existe uma rede de apoio.”

Vítima 4:  “Eu tive um namorado que me bateu, me deu um soco no nariz que me fez ir parar no hospital, sangrando. Foi a primeira e única vez que ele encostou a mão em mim, porque logo depois disso eu encerrei o relacionamento. Fui a polícia e fiz um boletim de ocorrência. Ele é professor de jiu jitsu, mas perdeu o direito de dar aulas. Somos muito vulneráveis. Geralmente se inicia com a violência verbal e é difícil quando a pessoa está envolvida no relacionamento, então é importante procurar alguma ajuda, conversar com alguém. Tem que denunciar e correr atrás dos seus direitos.”

 

A violência contra a mulher em 2019

  • Total de registros de ocorrência: 1018
  • Cumprimentos de mandado de prisão: 45
  • Lesão corporal: 420
  • Lesão corporal (tentativa): 13
  • Estupro: 8
  • Estupro (tentativa): 2
  • Estupro de vulnerável: 19
  • Assédio sexual: 1
  • Tentativa de feminicídio: 5
  • Feminicídio: 1

(Fonte Deam)

 

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