Do ensino médio para o Enem

A saga do pretenso universitário brasileiro
sexta-feira, 23 de janeiro de 2015
por Jornal A Voz da Serra

Ana Blue

Quarenta e poucos anos atrás. A Fundação Cesgranrio carrega consigo a possibilidade de mudar completamente a vida dos jovens do estado do Rio de Janeiro. A instituição, criada para que houvesse no estado um órgão dedicado permanentemente à organização dos exames de acesso ao ensino superior e a demais atividades educacionais, era a porta de entrada para a sonhada graduação — o grande motivo de orgulho para a família e, claro, o primeiro dos muitos passos rumo a um futuro profissional promissor, digno de títulos quase que da nobreza.

 Os dedos corriam sôfregos pelas listas. Tudo o que se queria era um nome; o seu próprio nome, ordenado alfabeticamente junto a tantos outros nomes, provando que o esforço valeu a pena. Aprovado. Apto a seguir carreira, enfim. Agora, nesses 40 anos, do vestibular da Fundação Cesgranrio ao Enem, o que mudou? 

Do Enem para o Facebook: A era da informação desinformada

"Para não ficar muito cansativo, vou agora ensinar a fazer um belo miojo, ferva trezentos ml’s de água em uma panela, quando estiver fervendo, coloque o miojo, espere cozinhar por três minutos, retire o miojo do fogão, misture bem e sirva”. No Enem de 2012, essa redação ficou em evidência no Brasil. O candidato escreveu dois parágrafos normalmente, respeitando o tema proposto — o movimento imigratório para o Brasil no século 21 —, mas em seguida inseriu a receita. E depois da receita, voltou ao tema. A redação obteve 560 pontos; o máximo era de 1.000.

Rebeldia, protesto ou — como se costuma dizer nas redes sociais — zueira? O Enem, a princípio, foi pensado apenas como um mecanismo de avaliação dos alunos egressos do ensino médio, mas a partir de 2009 sua formulação e seus critérios de avaliação foram alterados, com o aumento do número de questões — de 63 para 180 — e utilização da prova em substituição ao antigo vestibular, além da adoção do sistema de Teoria de Resposta ao Item, ou simplesmente TRI, em que é adotada uma análise mais específica de habilidades e conhecimentos. Com isso, o exame passou a ser o principal mecanismo de avaliação dos candidatos à rede superior de ensino, por meio de programas como o Sisu (Sistema de Seleção Unificada), o ProUni (Programa Universidade para Todos) e o Fies (Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior). Além disso, através do Enem é possível requerer o certificado de conclusão do ensino médio.

Então, com tantas vantagens embutidas no exame e sendo ele um método sério, custoso — para se ter ideia, o Enem 2014 custou aos cofres públicos R$ 52 por candidato; algo na casa dos R$ 450 milhões no total — e que envolve milhares de faculdades e universidades no Brasil inteiro, por que alguns candidatos insistem em cometer estas "insanidades”? São 180 questões, como já citado, mais de 9 horas de prova em dois dias de aplicação, quase uma maratona, e ainda assim há quem brinque, fuja do tema ou "leve na flauta”, como diriam os estudantes da década de 70. Na era das redes sociais, o engraçado, o "postável”, ou seja, tudo aquilo que pode virar combustível para as piadas na internet parece ter mais peso que a informação de fato. O irônico é que os jovens de antes, que prestavam vestibular e chegavam a adoecer quando não passavam, não tinham esse amplo acesso à informação a que temos hoje; já alguns jovens de hoje, mesmo com o amplo acesso a todos os meios de informação, ainda priorizam o bizarro, o factoide. Fora os que preferem perder o Enem, mas não perder a piada. 


Do Facebook para o Instagram: "Tomei pau... de selfie”

Na edição 2014 da prova, no primeiro dia de aplicação, foram 65 candidatos desclassificados por envio de fotos às redes sociais, como Facebook e Instagram, tiradas dentro dos locais de aplicação do exame. O MEC e o Inep monitoram postagens referentes ao Enem feitas nestas redes, desclassificando-os em seguida. Infelizmente, a necessidade de exposição constante destes jovens muitas vezes faz com que as prioridades se confundam; vale tudo por uma curtida, vale tudo por uma clicada, por uma foto compartilhada. O futuro já não é mais como era antigamente.


Talita Melone 

 

Informação versus formação: 529,374 mil vezes zero

Mas o ponto crítico do Enem 2014 foi o número de redações que obtiveram a nota mínima, ou seja, que zeraram nessa questão: 529,374 mil, dentre as quais 217,3 mil fugiram do tema, sem se ater ao foco principal do texto --- a publicidade infantil. Para Talita Melone (foto), professora do ensino básico, isto é reflexo de uma luta inglória entre informação versus formação. "Temos um sistema de ensino que foca na quantidade de informação e consumo rápido desta, onde a grade curricular passada aos alunos muitas vezes serve para ‘passar na prova’ e nada mais, sem o aprofundamento necessário para que se qualifique a formação, que exige tempo, dedicação e aperfeiçoamento. Para produzir um texto, tenho que entender a escrita como forma de me expressar e me comunicar com o mundo, com o outro. Isso é social. Numa sociedade doente socialmente, temos jovens e adultos que não conseguem se aprofundar num texto tal como não conseguem fazê-lo numa conversa informal, num relacionamento, no ambiente de trabalho”, acrescenta. De fato, as notas da redação do Enem 2014 caíram 9,7% em relação ao ano anterior. Significa dizer que, seja qual for a problemática educacional envolvida na queda acentuada dos resultados, parece que a situação piora gradativamente. 

O ministro da Educação, Cid Gomes, associou o mau desempenho dos candidatos na redação à falta de intimidade com o tema, pois, segundo ele, os estudantes leem pouco. E se até assuntos de interesse têm pouca ‘procura’, um tema como "publicidade infantil”, pouco discutido na mídia em geral, não pode ser muito aprofundado por um candidato que não tenha informações sobre. Os alunos que zeraram a redação não puderam se inscrever no Sisu, que foi aberto na última segunda-feira. Fica aí a promessa de estudar mais em 2015.

Entre mortos e feridos...

Salvaram-se pelo menos 250 candidatos com a nota máxima, isso num universo de 5,9 milhões de participantes que tiveram sua redação corrigida. Destes, pelo menos um é de Nova Friburgo, conforme reportagem de Lucas Vieira no primeiro caderno, edição de hoje. A cidade coleciona também boas posições no ranking que define os 100 colégios mais bem colocados no estado: Externato Santa Ignez, Colégio São João Batista, Anchieta, Nossa Senhora das Dores e Nossa Senhora das Mercês estão em destaque. Outra boa notícia é que nas questões de ciências humanas, ciências da natureza e linguagens, por exemplo, houve aumento nos pontos conquistados.

"Compre uma berinjela bem madura, corte em cubos e refogue com alho e cebola. Quando ela estiver bem murchinha, acrescente dois tomates picados, sem pele e sem semente, e deixe apurar. Tempere a gosto e sirva com uma boa porção de talharim”. 

Se você estranhou essa receita de macarrão mediterrâneo no meio desta reportagem, imagina a cara do avaliador que leu uma receita de miojo no meio de uma redação do Enem. 

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TAGS: enem | Educação
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