Laryssa Frezze
Uma sociedade tem de estar em crise se existe uma ameaça eminente pairando sob a cabeça de seus andarilhos.
Talvez não seja esse o índice preferencial a que se recorra para se falar de crise atualmente. Justamente por isso, talvez seja esse o assunto mais emergencial de todos—e aquele ao qual devamos prestar maior atenção.
Na antiga Grécia nenhum mal poderia se infligido a um andarilho em viagem. Trilhar o caminho era, portanto, garantia de segurança e o caminho em si, fortaleza. E mais, ao chegar a qualquer residência, o peregrino tinha o direito de ser acolhido, receber banho e uma refeição e somente então o anfitrião poderia lhe perguntar o nome e as pretensões.
Na Grécia, andarilhos eram protegidos pela lei sagrada da hospitalidade, e quem fazia valer tal lei era ninguém menos que o próprio Zeus—com quem não se brinca impunemente.
Também na Galícia—ou por onde quer que se estendesse o império celta—os andarilhos eram regidos por leis e amparo e proteção. E quem eram eles se não os bardos, a quem se deve a passagem, de geração a geração, da cultura e do “lore” céltico? Que seria da memória desses homens sem seus bardos? Bem, disso bem sabemos, já que não restou nenhum deles para continuar a tradição e o pouco que ficou registrado de sua cultura não lhe faz jus à riqueza. Deles guardamos, no entanto, a seguinte lição: peregrinos levam histórias e as histórias de um povo (ou da união e encontro entre eles) devem ser preservadas.
Um pouco mais acima, e mais a frente na linha temporal também, havia os Vikings, conhecidos por serem bárbaros e sanguinários guerreiros. E, no entanto—além de outros hábitos sociais que deixariam a nós, civilizados, boquiabertos e confusos com nossa bestialidade—, também protegiam seus caminhantes. Odin mesmo, a suma-divindade viking, tomava, dentre suas muitas formas, a de um andarilho cinzento. E a lição que fica é a mesma: deve-se proteger e respeitar os que caminham.
Os romanos não tinham tal costume, e foi deles que herdamos grande parte de nossas convenções sociais. Aprendemos na escola que os romanos eram civilizados e os demais povos—todos eles—uniam-se numa massa suja e absurda de gente, os bárbaros.
Ao menos um dos grupos aqui citados, os celtas (embora seja essa uma denominação genérica e que designa muitos povos) entram para a História como bárbaros. Quanto aos Vikings, aos olhos romanos, talvez não ficassem muito longe disso. Mas além do respeito aos caminhantes, tais povos não magoavam suas mulheres, velhos e crianças—como era costume romano. Infelizmente, não foi essa a tradição que nos ficou.
Mas falávamos de andarilhos, voltemos a eles.
O mundo só é capaz de tolerância através do intercâmbio de cultura, o que majoritariamente tem sido feito, ao longo dos tempos, por meio do se jogar dos peregrinos ao mundo, e do seu retorno prenhe de histórias.
Uma sociedade que não é capaz de garantir segurança e respeito aos seus caminhantes é uma sociedade cancerosa e prestes à queda.
Se nos é negado o direito de ir e vir, livremente, o que nos resta? A cega obediência ao medo? O medo deixou de ser um sentimento para se tornar uma instituição, a qual—se manipulada devidamente—deixa o subjugado onde ele é menos incômodo: no frágil papel de presa acuada.
Esse é um apelo em prol dos andarilhos solitários—tão jogados ao mundo e à crueldade dele. Que Zeus e Odin e todas as divindades que os protegem estejam sempre ao alcance e que a proteção do caminho seja o norte, num mundo em que há nortes espalhados aos quatro cantos e, de fato, em lugar algum.
lara_frezze@hotmail.com
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