Diário de um peregrino solitário

Geógrafo Thomaz Morett conta como foi a experiência e as lições de percorrer a pé, durante 4 dias, a trilha TransCaledônia, de Lumiar a Teresópolis
sábado, 23 de novembro de 2019
por Adriana Oliveira (aoliveira@avozdaserra.com.br)
Os Três Picos vistos por trás, no Vale dos Frades (Fotos: arquivo pessoal de Thomaz Morett)
Os Três Picos vistos por trás, no Vale dos Frades (Fotos: arquivo pessoal de Thomaz Morett)

No dia 3 de outubro, o professor, geógrafo, consultor ambiental e terapeuta friburguense Thomaz Morett, de 56 anos, começou a percorrer, sozinho, a trilha TransCaledônia. Foram quatro dias caminhando, desde a pracinha de Lumiar até o Vale dos Frades, em Teresópolis, passando por Macaé de Cima, Debossan, Cascatinha, São Lourenço, Três Picos. 

O trajeto de 120 km compõe o Caminho da Mata Atlântica, uma megatrilha de mais de 3,8 mil km, a maior do Brasil e uma das mais longas do mundo, que corta cinco estados e liga toda a cadeia montanhosa da Serra do Mar, desde o Parque Nacional Aparados da Serra (RS) até o Parque Estadual do Desengano (RJ). 

Neste relato, feito com exclusividade para A VOZ DA SERRA, Thomas conta, numa espécie de diário de viagem, como foi a sua experiência, os “insights” que teve e as lições que aprendeu.  

Biofilia, ou afeição pela natureza, a principal motivação

“Qual a finalidade desse projeto? Por que essa caminhada? Por que  ir sozinho? 

São perguntas que me fiz e que me fizeram a partir do momento que decidi realizá-lo.

Com toda certeza, não tinha intenção alguma de me promover ou bater algum recorde esportivo ou psicológico. Porém, no amadurecer do projeto, foram aparecendo duas propostas motivadoras. A primeira delas, está na divulgação do Caminho da Mata Atlântica  e do seu objetivo principal, ou seja, o despertar de uma consciência ecológica através de práticas de atividades ao ar livre. Com relação a isso, fiquei muito feliz, pois senti que as pessoas perceberam isso, através dos inúmeros apoios e incentivos que recebi.

A segunda proposta está contida dentro da primeira e se fundamenta na divulgação do contato com a Natureza como uma ótima prática para nos desintoxicarmos das artificialidades do dia a dia e para nos conhecermos melhor.  O ecólogo americano Edward Wilson definiu esse sentimento como biofilia, que significa afeição pela natureza, o que, segundo ele, contribui para o equilíbrio emocional e mental para quem a cultiva, amenizando e até curando vários desequilíbrios físicos e psicológicos que se tornaram epidemias nos dias atuais, como ansiedade, angústia, depressão, síndrome do pânico e  outros.

Atravessei cinco microbacias hidrográficas: rios Macaé, Santo Antônio/Debossan, Cônego/Cascatinha, São Lourenço/Grande e Frades. As altitudes variaram de 680 metros (Praça de Lumiar) até 1.800 (Vale dos Deuses, no Parque Estadual dos Três Picos). A média foi de seis horas de caminhada por dia, mas houve dias em que caminhei 11 horas, inclusive à noite. 

Primeiro dia: desaceleração nas profundezas da Mata Atlântica

O primeiro dia da caminhada se caracterizou por esse contato mais intenso com a Mata Atlântica, nas regiões de Lumiar, Gaudinópolis e Macaé de Cima. Iniciei a caminhada na Praça de Lumiar, atravessei o lago e segui na direção do asfalto. Os primeiros momentos de qualquer caminhada são intensos, pois estamos tentando achar um ritmo para os nossos passos e pensamentos. Estava tranquilo e disposto, mas com o “diálogo interno” a mil, o que dificultava um pouco a concentração. 

Em uma caminhada aos poucos vamos percebendo que entramos em um espaço e tempo os quais não estamos habituados. Há uma desaceleração, e com isso uma nova percepção aparece. 

Ocorre uma “consciência de fluxo”, termo proposto pelo psiquiatra Mihaly Csikszentmihalyi para definir o estado psicológico de excelência e criatividade que entramos em determinados momentos da nossa vida em que estamos totalmente presentes no que estamos fazendo. E também o que a psicanálise junguiana define como Sincronicidade, que definimos como “coincidências significativas”, que surgem a todo momento.

Ambos os conceitos acontecem durante uma caminhada e catalisam uma conexão com uma “Consciência Maior” que contribui para uma transformação interior.

Com essas percepções, subi a Serra das Paineiras na entrada para Rio Bonito. Sol a pino e esforço físico, ótimo momento para amaciar o ego. Deixar ir embora, perdoar e se perdoar. Na virada para Gaudinópolis, visual das montanhas de São Pedro da Serra. A beleza vitaliza.

Macaé de Cima:  “hotspot” da biodiversidade planetária

Aos poucos fui me integrando com o ambiente e pertencendo ao caminho. Cheguei a Macaé de Cima ao entardecer e percebi que iria pegar noite na caminhada. Isso não me preocupou, sabia que nada estava acontecendo por acaso, tinha uma razão de ser.

A região de Macaé de Cima, segundo alguns pesquisadores, caracteriza-se por representar um “hotspot”  de biodiversidade planetária. Quando ocorreu a última glaciação, por volta de cem mil anos atrás, quase toda a natureza do planeta pereceu ou se retraiu a pequenas áreas. Essas áreas, conhecidas como “refúgios biológicos”, representaram bancos de espécies para que a Natureza pudesse ressurgir após o período glacial.  A região de Macaé de Cima foi um desses refúgios biológicos que ajudaram a preservar a biodiversidade planetária.

Pernoitei na pousada Rancho Dourado, parceira do projeto Caminho da Mata Atlântica. A construção interage com a Natureza, todo o resíduo é reciclado, inclusive as águas e dejetos da cozinha e dos banheiros. A alimentação é natural, incentivando o consumo de produtos da região, como shitake, banana passa, bolos e pães integrais.

Segundo dia: trilhas dentro da floresta exigem experiência 

Na manhã do segundo dia, segui por um caminho bastante antigo, que liga Macaé de Cima a Debossan. Grande parte desse caminho é feito através de trilhas na floresta, o que exige certa experiência para percorrê-lo com segurança.

No fim da tarde, cheguei ao Cascatinha e vislumbrei as principais montanhas dessa microbacia hidrográfica: Caledônia, Pedra do Elefante, Chapéu da Bruxa. 

Toda essa região montanhosa também representa pontos de alto endemismo, devido às suas altitudes, superiores a 1.500 metros.

Terceiro dia: contornando o Caledônia

Depois de mais uma pernoite em pousada, comecei a percorrer um antigo e histórico caminho que foi utilizado pelos primeiros colonizadores de Nova Friburgo, no início do século 19. Esse caminho é conhecido como Trilha do Barão ou Caminho para São Lourenço e na sua totalidade liga Cascatinha à localidade de Castália, em Boca do Mato, no município de Cachoeiras de Macacu. Antes de descer a Serra do Morro Queimado, o caminho passa pelo distrito de São Lourenço, onde entraria para seguir na direção dos Três Picos.

Seguia o caminho deixando para trás o visual das montanhas do centro de Friburgo, em especial a Pedra do Elefante. Caminhava com o Caledônia na minha frente, coberto por nuvens, o que anunciava uma mudança no tempo.  Logo estaria passando ao seu lado e depois, por trás. 

Nesse trecho do caminho, o contato com o Caledônia é muito próximo, o que nos coloca em um estado de admiração e quietude. Na altitude em que estava, as coisas passam rápido: nuvens, pássaros, paisagens, dor, pensamentos, sentimentos, tudo flui. Tudo fica mais simples e tranquilo, a leveza da vida aparece, pois não é possível deter essa fluidez do momento. Aliás, o sofrimento aparece quando tentamos deter a fluidez da vida. Ensinamentos do caminho. 

Pensamentos, sentimentos e lembranças se misturam na paisagem

Caminho agora definitivamente para São Lourenço, com o Caledônia ficando nas minhas costas. Surgem outras paisagens, pensamentos, sentimentos. Como o ambiente influencia o seu estado psicológico. O legal das caminhadas longas é que tudo é fluídico, muda a todo momento. Pensamentos, sentimentos, lembranças se misturam com a paisagem do caminho. O novo aparece a todo instante.  Uma lembrança ruim ou um pensamento negativo se evaporam com uma paisagem deslumbrante ou um vôo dançante de uma lepidóptera.

Surge a primeira visão dos Três Picos e um silêncio poderoso se instala. Consciência de fluxo, totalmente presente no momento. Interação total com a paisagem.  Chego no finalzinho da tarde em São Lourenço, onde estão localizados os Três Picos, montanha mais alta de todo os 3.800 km do Caminho da Mata Atlântica e também a mais alta da Serra do Mar. 

Cheguei em São Lourenço com o sol se pondo atrás das montanhas. Depois de um dia inteiro caminhando por pequenas trilhas, percebi que teria que caminhar pelo asfalto, o que me deu uma sensação estranha: quebrou o estado de paz e conexão que tomou conta de mim o dia todo.  Comecei a perceber as dores e o cansaço de um dia inteiro de caminhada. Perdi a conexão. Caminhei por um bom tempo nesse estado lamuriante, ansioso para chegar no abrigo Três Picos, onde passaria a noite. Carros passavam, mais uma ladeira, ombros doloridos, sede, a noite chegando, solidão. Percebo os últimos raios de sol pegando carona com as nuvens que passeiam pelos Três Picos. Silêncio.

Do nada, aparece uma música. Percebo imediatamente a inevitabilidade da situação e o desgaste desnecessário em tentar brigar com o inevitável. Um novo estado de ânimo aparece. A noite chega. Interajo de novo com o caminho, aceitando os sentimentos que apareceram nessa caminhada no asfalto como necessária para tomar consciência de sentimentos que precisam chegar à consciência para irem embora.

Depois de um jantar maravilhoso no Abrigo Três Picos, com direito a dois copos da cerveja artesanal Cabeça do Dragão, durmo com a cabeça nas estrelas.

Último dia: a hora de cruzar o limiar e enterrar os “mortos” do nosso interior

“Acordo sem saber que dia era.  Era o dia de “cruzar o limiar.” Cansaço, sede, falta de sinal de celular, caminhada no asfalto, as pessoas que encontrei, as músicas que escutei, tudo teve uma razão para acontecer. Toda essa experiência, se você permitir, vai te levando e te preparando para cruzar o limiar. Esse é o ponto alto desse tipo de caminhada.

O que representa cruzar o limiar? Renovação. Uma nova forma de perceber e se relacionar com você e com a vida. Porém, para que isso aconteça, você tem que “enterrar os mortos”. O que são os “mortos”? Tudo o que te limita e que você carrega inutilmente a vida toda, ou seja, o peso da sua mochila!

Isso exige honestidade, coragem e desapego. Qualidades trabalhadas nesses dias de caminhada. Todo o sentimento pesado e negativo surge a partir do nosso isolamento e a dor vem justamente para “quebrar” o casulo do ego, que criamos para nos “proteger” e separarmos do todo. Se permanecemos isolados, dentro desse casulo, o inevitável vai acontecer, ou seja , vamos morrer. A dor, então, aparece como uma última alternativa do nosso ser, para rompermos esse isolamento. 

Quando nos comportamos assim, a vida torna-se insuportável, o medo torna-se avassalador e a insegurança nos domina. Nessa situação, não existe o perdão, só isolamento e dor.

Se não resistirmos a percepção de que na verdade “somos todos um”, a dor desaparece e a vitalidade reaparece e surge o perdão a nós mesmos e aos outros.

O ato de perdoar me acompanhou pelo caminho inteiro, me aliviando muito nas subidas e foi a última prova para completá-lo internamente.

Principal lição: do sofrimento à gratidão

Ao acordar na última manhã dessa caminhada, percebi que a dor e o sofrimento são histórias que contamos ininterruptamente para nós mesmos. Então, qual tipo de histórias queremos contar para nós mesmos? A resposta a esta pergunta determinará o tipo de vida que teremos.

Ao amanhecer, o visual dos Três Picos é transformador. Na subida do pasto, o silêncio surge naturalmente. Concentro na respiração e nas passadas e a beleza de estar no momento presente reaparece com toda intensidade. O maciço do Caledônia agora está aparecendo de costas. Caramba, como andei! Estava atrás do Caledônia, penso em silêncio, vendo as distâncias no horizonte. 

Transformação interior, o poder da peregrinação

Todos os que são chamados a trilharem caminhos longos sentem a transformação interior necessária que esses caminhos cobram. Transformando o caminhante em peregrino e o caminho em peregrinação. Etimologicamente, a palavra peregrinação significa viagem a um lugar de devoção, romaria, que significa viagem espiritual. Defino o espiritual como um estado de conexão com a Natureza e com o Universo.

Peregrino significa viajante que percorre um caminho espiritual para alcançar a bem aventurança e pacificar o seu interior. Sendo assim, o importante na peregrinação é desenvolver a si próprio, suportando e vencendo as dificuldades  externas e internas que por ventura possam aparecer. 

Tradicionalmente, os povos nativos também utilizavam os longos caminhos e as grandes caminhadas na Natureza para uma busca espiritual muito mais intensa, denominadas de Ritos de Passagem e Busca da Visão, que resumidamente podemos denominar como uma busca para um novo sentido da vida para aqueles que se predispunham a fazer grandes caminhadas na Natureza.

A propósito, os caminhos de peregrinação já vêm acontecendo em vários estados brasileiros. No Sul , o Caminho das Missões; em São Paulo, o Caminho do Sol; em Minas e Espírito Santo, o Caminho da Luz, para citar somente alguns. No Estado do Rio, ainda não existe um caminho de peregrinação instituído.

Em busca da Luz

O Caminho que estou realizando revela aos poucos algumas singularidades especiais, para não dizer , espirituais. Inicia-se em Lumiar, que significa “emanar luz, reluzir, tornar claro.”  E termina no Vale dos Frades, que significa monge, eremita, que busca a sua própria luz. Frade também significa Frater, irmão, irmão da Luz.

Quem sabe formamos uma Fraternidade de caminhantes  peregrinos da Luz, que virão a contribuir para o surgimento de um novo paradigma cultural, fundamentado no convívio harmonioso com a natureza e com uma visão sistêmica de toda a sociedade. Bacana, não?

Finalmente, chego ao meu destino final. Sem nada de especial, uma placa e um ponto de ônibus. Mas estou em um estado de consciência tão feliz e de profunda gratidão, por tudo o que passei nesses dias de caminhada, que fico parado no ponto de ônibus vendo os carros passarem. 

Nesse momento, lembro e anoto uma frase que li de um monge peregrino budista: “Você não pode percorrer nenhum caminho sem antes se transformar no Caminho.” Acho que esse estado de ânimo que me encontro é porque me transformei nesse caminho, penso, escutando o entardecer.”

 

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