Dia Nacional da Consciência Negra: uma data para refletir

Um artigo de Márcia Lobosco, mestre em Relações Étnico-Raciais pelo Cefet-RJ com a dissertação “Trajetória de Professoras Negras no município de Nova Friburgo"
sexta-feira, 18 de novembro de 2016
por Jornal A Voz da Serra
(Foto: Steve Hillebrand / Wikicommons)
(Foto: Steve Hillebrand / Wikicommons)

Em 2003, foi assinada a lei n.º 10639 que alterou a lei de diretrizes e bases da educação nacional para incluir no currículo da rede de ensino — pública e privada — a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e instituir, no calendário escolar, a inclusão do dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’ — oficialmente instituído em âmbito nacional mediante a lei n.º 12.519, de 10 de novembro de 2011, sendo considerado feriado em cerca de mil cidades em todo o país e nos estados de Alagoas, Amazonas, Amapá, Mato Grosso e Rio de Janeiro através de decretos estaduais. Passados tantos anos, ainda há muito que se avançar com relação a essa temática — inclusive por haver, em algumas cidades do país, movimentos para a retirada da data que marca um dia dedicado a se pensar sobre as questões étnico-raciais.

É interessante perceber que há um desconhecimento geral sobre a motivação dessa lei, tanto no que diz respeito ao estabelecimento da temática obrigatória de estudos quanto no tocante à necessidade de se refletir sobre o assunto, o que, obviamente, não pode se restringir ao dia 20 de novembro. Para a maioria da sociedade, a data é apenas o “aniversário de Zumbi”; com essa definição, restringe-se a compreensão da luta da população negra ainda hoje, passado mais de um século da abolição da escravatura. Entender, então, que essa é uma “data comemorativa” tão importante quanto o 7 de setembro ou o 15 de novembro continua a ser um desafio treze anos após a promulgação da lei.

Os movimentos sociais de consciência negra não nasceram com essa data; nem tampouco com a redemocratização do país, no final dos anos 1980. Sabe-se que os movimentos de resistência foram muitos e em todo o país. Vários deles se concretizaram na organização de quilombos; alguns contaram com a participação de intelectuais brancos do final do século XIX e início do século XX; mas todos, sem exceção, tiveram a militância de uma população negra que enxergava a opressão e a discriminação sob as quais vivia e decidiu se reunir e lutar, através da conscientização e reflexão sobre seu papel na sociedade brasileira.

Sabemos que, com relação ao negro, as circunstâncias de sua chegada ao Brasil, por meio da escravidão, configuram um preconceito histórico com o indivíduo de cor preta, que foi trazido de terras africanas, apartado de sua família, separado de seus costumes e feito escravo nas terras brasileiras pelo colonizador europeu. Assim, após séculos de escravidão, a libertação dos escravizados ocorreu de modo a não lhes dar chance de ascensão social. Deixados à própria sorte, os negros libertos não tinham moradia nem emprego e estavam envoltos numa situação de preconceito e discriminação. A cruel escravidão a que foram submetidos, além de representar um conjunto de violações de direitos, gerou para a população negra também outro legado: a interdição à educação formal. 

Além disso, o incentivo à imigração, especialmente de povos europeus, fazia parte de um projeto de embranquecimento da sociedade brasileira, considerado como fundamental para que o país se desenvolvesse economicamente e se configurasse como uma nação, a exemplo do que eram as nações do sul da Europa, tidas como exemplo de civilidade. Assim como a mão de obra negra escrava não foi substituída pela mão de obra negra livre e, sim, pela mão de obra branca dos imigrantes, nas escolas, as vagas foram preenchidas pelas crianças brancas, filhos dos trabalhadores imigrantes, em detrimento das crianças negras. 

A despeito de toda essa discriminação e marginalização, há registros (poucos) sobre organizações autônomas e independentes para escolarização dos negros em algumas regiões do país. Formou-se, assim, uma intelectualidade negra que viu na educação formal um modo de inserção social, formada por homens letrados e semiletrados, capazes de perceber que os problemas econômicos, políticos e sociais que penalizavam os membros de seu grupo étnico-racial no período imediatamente pós-abolição não configuravam um “estado de exceção”, pelo contrário, instituíam uma regra geral a que estariam sempre submetidos. 

Somente a partir dos anos de 1970, com a efetiva ampliação do ensino público e gratuito, o negro ingressou na escola de forma constante, não ficando livre, no entanto, de ser marginalizado dentro do processo de escolarização, inclusive, e principalmente, pelo viés da cultura — eurocêntrica e marcadamente discriminatória com relação ao negro e sua afrodescendência. 

Diferentemente da atuação do movimento negro no início nas primeiras décadas do século XX, quando havia uma proposta e um apelo de inserção no sentido assimilacionista, na segunda metade desse mesmo século, especialmente nas décadas de 1980 e 1990, vê-se um uma maior análise da condição social do negro e isso se relaciona a variável raça ou cor, que passam a ser compreendidas como um princípio étnico classificatório que está na base da persistência das desigualdades social e econômica existentes.

É dessa época a definição da data de 20 de novembro como Dia da Consciência Negra. Mais do que a escolha de uma data significativa para essa celebração, que remete a um personagem real diretamente ligado à cultura afro-brasileira e à luta pela libertação dos negros — Zumbi dos Palmares —, o movimento negro buscou uma releitura histórica do 13 de maio de 1888, trazendo à consciência de toda a sociedade que, mais importante do que a lei que libertou os escravos, em 1888 — mas que, em consequência de todo o processo de escravização, os marginalizou —, seria importante refletir sobre a luta de todos os negros desde antes da lei para que seu povo fosse libertado, respeitado e inserido efetivamente na sociedade brasileira.

Mais do que nunca vivemos tempos de profundas transformações e mudanças de paradigmas que trazem mais perguntas do que respostas. Esse, no entanto, é um caminho que precisa ser percorrido para que uma nova sociedade seja construída, em que seja verdadeiramente respeitada e aceita a pluralidade, de modo a se reconhecer que, de diferentes modos, somos todos — brancos e negros, homens e mulheres — construtores históricos e sujeitos sociais.

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TAGS: Artigo | movimento negro
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