A desumanização do homem

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015
por Jornal A Voz da Serra
A desumanização do homem
A desumanização do homem

Davi Roballo(*)

Em seu clássico Admirável mundo novo, Aldous Huxley, assim como Júlio Verne, George Orwel e Ray Bradbury, antecipou visionariamente o futuro em relação ao tempo em que se encontrava. Gênio, sim. Profeta e adivinho, não. O autor, como um observador da vida e dos acontecimentos, sabia que um movimento sempre gera outro, que toda ação tem uma consequência. E a época em que escreveu seu clássico (1932) talvez seja o ponto inicial onde se começou a perceber e a sentir as consequências que a Revolução Industrial nos deixou como herança. Sensível como fora, Huxley não perdeu a oportunidade de lançar seus olhos para além do horizonte na linha do tempo e se pôs a descrever o que poderia vir acontecer.

No romance de Huxley, as máquinas fabricam crianças através da manipulação genética e úteros artificiais, produzindo seres humanos destinados a determinados serviços e desde que nascem são rotulados conforme a classe social e nível intelectual. O amor é livre, ninguém é de ninguém. As crianças são condicionadas desde a tenra idade através de sons e imagens a se conformarem com sua classe social e a obedecerem sem questionar, como também dependendo da classe a que pertencem, aprendem a odiar livros e o pensamento. Todos os habitantes tomam diariamente uma dose de Soma, uma droga que não os deixa perder o entusiasmo e muito menos transgredir as normas. Quando há um princípio de revolta a polícia utiliza bombas com uma maior concentração de Soma, culminando com os revoltosos tomados por um choro quase que incontido de tanta alegria.

Em nosso mundo atual, devido ao avanço em relação à genética, já é possível através da inseminação artificial escolher a estatura, cor da pele, dos olhos e dos cabelos do bebê. A clonagem já é uma realidade barrada nos códigos de ética estabelecidos. A questão sexual está migrando do ato íntimo do relacionamento para o ato banal da relação, ou seja, o que importa é o prazer aqui e agora e quanto mais parceiros diferenciados, melhor. Como em Admirável mundo novo, sentimentos, família e moralidade já estão sendo considerados ultrapassados. A institucionalidade de pai e mãe, como educadores e socializadores primários, também está perdendo a razão de ser, pois aos poucos está crescendo a delegação dessas responsabilidades ao Estado, já que os pais estão ocupados demais em prover as exigências banais da cultura de consumo.

Outro ponto atualmente interessante é o farmacológico, com os seres humanos consumindo uma alta taxa de medicações, seja para dormir ou para relaxar, tanto quanto para outros males decorrentes da aceleração exponencial das exigências e responsabilidades da vida moderna, entre eles a depressão, a ansiedade... Em síntese, a vida está tão artificial, que nossas emoções só estão funcionando com intervenções químicas artificiais. Nosso corpo está ficando tão sobrecarregado que não mais consegue produzir de forma eficiente os próprios hormônios e outros componentes químicos essenciais para o perfeito equilíbrio emocional e físico. Os fármacos como os ansiolíticos e antidepressivos são o Soma atual, que silenciosamente alimentam a Indústria da felicidade gerando milhões aos laboratórios. Estamos vivenciando uma época, que embora tecnológica, caminha para o embrutecimento, justamente por estarmos confundindo tecnologia com o saber. Estamos nos tornando experts em operar máquinas e dispositivos eletrônicos em detrimento a nossa capacidade de abstrair. O pensar, o raciocinar, o avaliar está sendo engolido por mecanismos artificiais, ou seja, estamos sendo sugados e extinguidos como indivíduos por nossa própria criação, isto é, construímos a máquina e a máquina está destruindo o que há de humanos em nós.

No romance de Huxley a vida do personagem John, o Selvagem, é motivo de espanto, algo grotesco e ultrapassado, pertencente ao tipo mais atrasado da espécie humana, pois o Selvagem pensa, questiona e não precisa tomar o Soma. Gosta de Shakespeare e em sua leitura representa e interpreta a vida. O Selvagem reúne tudo aquilo que no Admirável mundo novo é inadmissível, algo que está aos poucos acontecendo conosco devido a degradação da cultura, um caminho que poderá nos conduzir ao mundo de Fahrenheit 451 de Ray Bradbury, onde os bombeiros acreditam piamente que a profissão surgiu na história humana para queimar livros e demais propagadores de cultura e não para apagar incêndios. 


(*) Jornalista, especialista em comunicação e marketing e jornalismo político.  [daviroballo@gmail.com]


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