De Três Picos para o mundo

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013
por Jornal A Voz da Serra

Vinicius Gastin
Há dois anos a rotina da comunidade dos Três Picos mudou por completo. A aposentada Tânia Carvalho cumpriu uma antiga promessa feita ao amigo Pedro de Paula e ambos inauguraram a pousada Pouso dos Paula naquela localidade, situada a três quilômetros do Ibelga. Desde então, a vida dos agricultores mudou e a população local passou a explorar, sobreviver e apreciar o que Três Picos oferece de melhor.
A pousada foi aberta em 2011 através de uma sociedade entre Tânia e Pedro, um jovem com problemas de saúde que o impedem de trabalhar na agricultura. “Eu o conheci quando era pequeno e a proposta que fiz a ele e aos seus pais era fazermos uma pousada assim que eu me aposentasse.”
O imóvel de Pedro, antes alugado, foi o local escolhido para montar o empreendimento. Durante as inúmeras viagens ao longo de sua vida, Tânia percebeu que a maioria das empresas explorava o trabalho das comunidades. “Eu conheci a localidade através de escaladas que eu fazia por lá. A comunidade é formada por agricultores familiares e eles não sabiam que aquele pedaço de terra lhe pertence. Eles vivem no entorno do maior parque estadual do estado do Rio de Janeiro.”
Ao desenvolver o projeto a empresária pensou exatamente o inverso e a própria população passou a explorar a localidade. “O pessoal de fora ganhava muito dinheiro e a comunidade, muito pouco. É como acontece em Lumiar, onde as pousadas pertencem a pessoas de fora. Além da descaracterização, seus moradores perdem as festas e, em seguida, a autoestima. A partir daí decidimos seguir pelo caminho do turismo socialmente justo e ecologicamente correto. A gente não mexe com a natureza e auxilia as pessoas informando o que devem, podem ou não podem fazer, para manter tudo em ordem. Elas querem ter aqui o que não têm na cidade. Então, não construímos casas coladas em beira de estrada, não jogamos lixo nos rios, nem cometemos outras infrações.” 
Ao descobrir o potencial da região, toda a população se envolveu. “É o máximo essa movimentação de dentro pra fora. Gosto de contar o que conseguimos fazer em termos de movimento, com a pousada. Se quiser saber realmente o que acontece a pessoa tem que ir lá e sentir, assim como os estudiosos da ONU, da Fundação Souza Cruz, da UFRJ.” 
A relação entre as pessoas da localidade vai além do âmbito turístico. Os vínculos de amizade foram fortalecidos e aumentou a união entre os moradores. “Nós orientamos os mais humildes sobre o que eles precisam saber para correr atrás de seus direitos. Propusemos que as reuniões fossem feitas na pousada e isso dinamizou os encontros das associações de moradores. Agora, por exemplo, todo mundo sabe que a Emater tem dinheiro para dar a eles, a custo zero.”

Festas típicas tornam-se fonte de renda extra
A pousada Pouso dos Paula funciona com a hospedagem, café da manhã e jantar. Todo o insumo é produzido pela comunidade local. Com o incentivo de Tânia as festas típicas da região foram recuperadas e contam com a participação direta dos moradores, responsáveis por montar as barraquinhas e vender seus produtos. O calendário oficial de festas da prefeitura inclui alguns eventos da comunidade dos Três Picos: a Festa de São João, Encontro dos Sanfoneiros, Festa à Fantasia do Dia das Bruxas. “Nós ajudamos apenas na organização das ideias. A comunidade se divide e cada um faz alguma coisa: o cachorro-quente, o bolo de fubá, o aipim cozido. Com isso, todos obtêm lucro. Nós ganhamos na hospedagem”, revelou.
Os fins de ano são especiais em Três Picos. Alguns professores de escalada e montanhismo ensinam as técnicas aos turistas, os levam ao cume das montanhas e organizam caminhadas. A procura por vagas na pousada é grande e o rápido esgotamento fez surgir um novo tipo de hospedagem. “Os próprios moradores alugam os seus quartos ao mesmo preço que eu cobro na pousada. O dinheiro é integralmente deles. Inclusive, nós perdemos alguns hóspedes e a comunidade ganhou. Os visitantes ligam para a pousada por ser o único local com telefone fixo e fazem as reservas para as casas deles.” Duas vezes por ano e no início de temporada acontece uma oficina de fotografia. Os fotógrafos levam os turistas para uma caminhada, ensinam-lhes a usar as máquinas e fotografar. À noite, todos se reúnem em torno de um laptop para apreciarem os resultados.
Outra peculiaridade é não ter o carnaval, pelo menos na época comum aos outros lugares. “Não tem como ficar quatro dias sem trabalho. Então, no sábado de Aleluia acontece uma legítima festa de Momo, com direito a malhação de Judas, baianas gigantes de cerâmica, bumba meu boi e marchinhas antigas. Ao final da festa, a tradicional fogueira é desmontada e os agricultores atravessam sobre as brasas descalços para agradecerem e pedir uma boa colheita”, contou Tânia.

Criatividade contra o desperdício
A criatividade é marca registrada da comunidade. As frutas e verduras que saem de um determinado padrão não podem ser vendidas. Todo o trabalho de cerca de 90 dias desde a plantação até a colheita poderia ser desperdiçado. Os prazos para receber o dinheiro das vendas chegam a 120 dias e o agricultor precisa ter o dinheiro para investir, preparar a terra de novo e plantar enquanto o atravessador negocia os produtos. Por isso, o Blog do Pouso dos Paula (pousodospaula.blogspot.com.br) anuncia as sobras das colheitas e os turistas vão até a plantação, colhem com as próprias mãos, pagam um preço reduzido e levam o produto. Alguns deles gostam tanto que passam a vivenciar a experiência com mais frequência. “O agricultor ensina com prazer e adora ser reconhecido. A autoestima melhorou muito”.

Queijo chimay: atração exclusiva da localidade
A gastronomia transformou-se em mais um atrativo interessante. Em alguns casos as receitas são exclusivas da comunidade: o tradicional queijo suíço chimay é fabricado apenas em Três Picos. “Recentemente um grupo de alemães reconheceu o queijo e eles ficaram encantados.” Os turistas não só se encantam como visitam a casa das famílias para aprenderem. As broas de milho, aipim, batata-doce e outros ainda são feitos sobre a folha de Caeté, no forno à lenha comunitário da localidade. Para reunir tantos sabores distintos e deliciosos, surgiu a Festa da Broa. “A ideia era fazer uma vez por ano. Mas já temos que fazer uma vez por mês porque temos encomendas. Duas senhoras fazem a broa uma vez por mês, vendem e tiram um salário mínimo.”
A arte de cozinhar tornou-se aliada na melhoria da qualidade de vida da população. A cada fornada, 60 broas são fabricadas e vendidas ao preço de R$10. O dinheiro complementa a renda das aposentadas, que acabaram criando um novo ciclo gastronômico dentro da comunidade: “As pessoas querem comer broa com chimay e outra família passou a fabricar o queijo. Elas conversam pra saber a quantidade a ser feita e vendem o potinho da chimay e a broa por R$15.”
No sábado as cozinheiras vão para a cidade e entregam as encomendas. O sucesso mudou a vida das famílias envolvidas, que comemoram a nova fase com Tânia. “Uma senhora, por exemplo, era agricultora. Não tinha condições e tempo de fazer as unhas, o cabelo, comprar sapatos e roupas novas. Ainda me emociono quando lembro o dia em que ela foi até a minha casa toda arrumada para agradecer e mostrar o que havia comprado.”
Com o incentivo da pousada, os agricultores puderam despertar os talentos e a criatividade guardada durante anos pela falta de oportunidade. A dona Dodoca, moradora há muitos anos de Três Picos, inovou. Os sacos de pano utilizados para carregar farinha transformaram-se em suportes de parede para guardar talheres e toalhas de rosto. “Perguntei para a Dodoca se ela sabia fazer e ela me respondeu que poderia tentar. Hoje não sobra nenhuma peça, vendem todas.”
Os produtos são vendidos inicialmente na pousada. Em todos eles há um cartão contando a história da fabricação, com o telefone e o nome da pessoa que fez. A partir daí muitos turistas ligam diretamente para o fabricante, vai a casa dele e, além de conversar, aprende como produzir. “Isso acontece com as geleias, por exemplo. Sobram muitas coisas e, a partir daí, fizemos uma parceria: os hóspedes que levarem a conserva ganham 10% de desconto na compra do produto pronto.”

Oficinas e reconhecimento
Duas vezes por ano e no início de temporada acontece uma oficina de fotografia em Três Picos. Os fotógrafos levam os turistas para caminhar, ensinam a mexer nas máquinas e a fotografar. À noite todos se reúnem em torno de um laptop para apreciarem os resultados.
Outras atividades como a oficina de macamê e pães geram consequências positivas. O Instituto Marca Brasil, de São Paulo, traça um mapa de Turismo de Experiências por todo o país e classificam Nova Friburgo, Teresópolis e Petrópolis como cidades que possuem atrativos diferentes. Os turistas têm uma experiência que vai acrescentar algo além de uma simples lembrança do local e aprendem a produzir através das oficinas. 
E assim, o Três Picos sobrevive da beleza, das vocações naturais e dos desdobramentos a partir de uma simples ideia. Alguns turistas criam vínculos e voltam frequentemente para buscar um refúgio junto à natureza. “Tem uma menina de 7 anos que adora as cachoeiras, a água limpa e o que ela chama de ‘compromisso de tirar leite das vacas’. Eles se adaptam aos horários dos agricultores e vivem o dia a dia deles. É algo fascinante.”

CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
TAGS:
Publicidade