De mãe pra mãe

domingo, 08 de maio de 2016
por Jornal A Voz da Serra
De mãe pra mãe

Depois das tarefas do dia, aquelas mil tarefas, ela busca a filha na escola, que a acompanha em mais uma necessidade imposta pela rotina. Andando pela rua, num misto de pressa, cansaço e a aconchegante sensação daquela mãozinha presa a sua, a mãe diz: — Florzinha, vamos jantar antes de irmos pra casa. A filha concorda, mas fala num tom de ensinamento: — Mamãe, você sabia que a gente pode comprar comida no mercado e cozinhar em casa? A vovó faz isso. 

Uma pausa e a mãe vive um daqueles momentos em que a vida se converte em filme, a temporalidade muda e uma fração de segundo dá conta de toda sua existência. Porém, estão com pressa, anoitecera e estão com fome. A largos passos, chegam ao restaurante e fazem um “jantar de amigas” — termo que costumam usar para esses momentos de cumplicidade mãe-e-filha. Comem, jogam conversa fora, contam os casos do dia. Porém, nada lhe retira aquela pulguinha de trás da orelha. Aquele desconforto que vem acompanhado de muitos questionamentos. Sua infância lhe passa pela cabeça: sua mãe acordando, cuidando da casa, fazendo o almoço. Todos à mesa, em todas as refeições. Brincadeiras que bagunçavam a casa ao chegar da escola, ou a brincadeira no terreiro — não era quintal, mas terreiro o nome que seu avô dava ao espaço externo. As brincadeiras? Subir em árvores, piques de todo gênero, aterrorizar as galinhas no galinheiro. Até que o sereno baixava e a mãe gritava, pra ir pra casa, tomar banho, se reunir para o jantar e para o recolhimento. E todo o tempo, a mãe estava lá, cuidadosamente zelando pelo aconchego da família, seja cuidando da casa, seja cozinhando o jantar, ou preparando aquele doce de sobremesa, ou tricotando uma roupa às vésperas do inverno, ou às vezes brincando de pique no terreiro, ou às vezes desenhando belos jardins, silenciosamente nutrindo com sua alma o espaço da casa em que todos habitavam. 

A mãe paga o jantar e saem mãe e filha do restaurante, novamente de mãos dadas, em direção ao carro. Seus pensamentos em turbilhão. Refaz seu dia: acordou antes das 6 da manhã, se arrumou, acordou a menina, vestiu-a, penteou-a, tomaram café da manhã, saíram às pressas, minutos antes do horário de entrada na escola. Chegaram, despediram-se com aquele abraço que não acaba nunca, e lá vai a menina. A mãe? Corre para o trabalho, depois do almoço vai para o outro, entre um ou outro resolve emergências, que podem ser pagar uma conta, comprar uma necessidade, ler aquele texto para a aula que fará na quarta-feira, levar o carro para trocar óleo ou os pneus, verificar com o pedreiro a construção da casa onde será seu futuro endereço. E pensa no lugar do afeto, no lugar da casa, da família. Pensa que está cansada. Escuta a filha que cantarola no carro e dá um sorriso. Que mãe ela é?, ela se questiona. Perguntas típicas de quem se vê na mudança de paradigma e localiza-se ali bem no meio, entre as mães donas de casa e as mulheres que, por uma diversidade de motivos, optaram por não ter filhos. Ela precisa conciliar estar no meio dos dois polos. E o faz. Com as dores e as alegrias que seu lugar lhe oferece. 

Chegam a casa, é tarde, preparam-se para dormir, banho, pijamas, cama, um bate-papo, uma história, uma oração e o sono que vem chegando. A menina dorme com o rotineiro carinho nas costas. A mãe se levanta e fica na dúvida entre alguma louça na pia e a burocracia do trabalho que trouxe pra casa. E pensa em todas as mães, as casadas, as solteiras, as independentes, as lésbicas, a toda pessoa que se dedica a um outro ser humano, que lhe dá seus dias, suas horas, que organiza seus horários dentro da rotina daquela pessoinha que lhe preenche os dias e a alma. Já não se culpa mais por não ter feito o jantar: vê-se dona de casa e vê-se dona da casa. Sabe que tem seu lugar e que, mesmo por não tricotar e não cozinhar sobremesas, também preenche o espaço da casa e preenche o espaço de mãe. Não como sua mãe preenchia, ou como sua amiga ou aquela conhecida preenche, mas preenche o seu lugar de mãe. E também não preenche o lugar de pai, pois sabe que atualmente as tarefas não mais têm gênero, estão todos sendo adaptados à liberdade e autonomia de desempenhar todos os papéis sociais que se fizerem necessários ou que forem escolhidos. 
A mudança de paradigma desafiou sua polivalência e, para ela, se faz no aconchego e na força do corpo feminino, mãe e mulher diante da vida. E ao se perguntar que imagem sua filha terá dela no futuro — pergunta que vem com certo medo da resposta — tranquiliza-se por saber que mesmo que não tenha o lugar que outrora as mães ocupavam, ocupa um lugar de luta, superação, sobrevivência, vivência e afetos, um novo lugar na maternidade. Termina a última tarefa do dia, seja a louça ou a burocracia, e dorme observando a respiração da criança — querida amiga que fez para toda a vida.

Kelly Cristine Oliveira da Cunha é coordenadora do curso de Letras da UFF – Polo Cederj e mãe da Valentina, de 6 anos

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