Da vida para a vida...

sexta-feira, 20 de março de 2015
por Jornal A Voz da Serra
Da vida para a vida...
Da vida para a vida...

Texto: Ana Borges /  Colaboração: Ana Blue

De acordo com dados do Censo Brasileiro de 2010 do IBGE, 8% da população brasileira declarou-se "sem religião” (o que equivale a 15,3 milhões de pessoas), dentre as quais cerca de 600 mil declararam-se ateias. No Censo de 2000, estes correspondiam a 7,4% (cerca de 12,5 milhões) da população. Em 1991, essa porcentagem era de 4,7%. Cabe salientar que o IBGE não pergunta quem de fato é ateu, quem é agnóstico, e quem apenas não segue alguma religião preestabelecida, embora conserve a sua fé em algo transcendental, denominando todos estes grupos pelo termo "sem religião”.

Publicamos o poema Transubstanciação por sugestão do nosso entrevistado, Fabrício Lopes, 37 anos, ateu, professor de História, pós-graduado em História da África e assessor parlamentar. Tal sugestão já nos diz alguma coisa sobre Fabrício, cujo pai e avô são ateus. E a mãe e avó, católicas. 

"A visão que eu tenho de morte, pós-morte, descrença em um Deus, talvez tenha, de alguma forma, sofrido alguma influência da minha formação acadêmica. Mas, no fundo, minhas convicções estão fundamentalmente baseadas na minha essência. Acredito que independentemente disso, sentir ou não a presença divina entre nós pode acontecer de várias formas.” 

"Fui batizado e quando fiz 15 anos minha mãe mandou rezar uma missa. Nada disso impediu que eu sempre fosse muito crítico em relação à religião. Penso que o fato de ter uma mãe e avó católicas, e pai e avô ateus me ajudou a avaliar, com clareza, essa questão. Acho que essas duas vertentes, ambas muito fortes, enriqueceram meu senso crítico e me levaram a discernir entre ser ou não isso ou aquilo.”

"Eu ouvia muito as conversas deles, as teorias e práticas do ateu e do religioso. Quando entrei para a faculdade a visão que eu tinha dos primórdios da humanidade se ampliou e fui adquirindo mais embasamento para as minhas reflexões. Naturalmente fui me afastando de qualquer tipo de religião, de um deus, até ficar tão distante que me desvinculei totalmente desse "laço” que me ligava de alguma forma a igrejas. E me senti mais verdadeiro, mais humanista, sendo ateu”.  

"Passei a olhar mais para os problemas e para as causas sociais que estavam ao meu redor, do que para divindades. Acho que a gente se afasta muito das reais necessidades dos nossos semelhantes ao transferir nossas responsabilidades. Devemos agir por vontade própria em vez de nos limitarmos a rezar, pedir ajuda de Deus, "esperar” que ele resolva. Nós é que temos que assumir o compromisso de fazer alguma coisa quando queremos encontrar uma solução para um problema.”

"Acho perfeita aquela saudação (da cultura indiana, também usada em outras regiões do sul da Ásia), o Namastê, que significa "o deus que habita dentro de mim saúda o deus que está em você”. O deus reverenciado em outras religiões, principalmente no Ocidente, é, no que me diz respeito, um deus distante. Não o sinto. Milagres existem, hoje, porque nós, os humanos, somos capazes de realizá-los através do avanço da medicina, da tecnologia, do conhecimento, das pesquisas científicas. Milagre há mil, dois mil anos? Não acredito.”

"Sou ateu e isso não me torna uma pessoa má, um não cristão. Ao contrário, sinto amor pelo próximo, me preocupo com o sofrimento alheio. E não preciso ter uma religião, frequentar igrejas ou templos, acreditar num ser superior para ser uma pessoa de bem e solidária. Mas, devo esclarecer que, no início desse processo, que não acontece de um dia para o outro, eu fiquei muito dividido, me questionava. Quando via cenas terríveis, como vemos sempre, seja de crianças morrendo de fome, ou outras tragédias aqui ou mundo afora, dá para ver Deus nisso? Não dá. Mas se a cena é cheia de beleza, então Deus está presente? É coisa de Deus?”

"Nunca antes na história da humanidade houve tanta gente acreditando em Deus, e adotando uma religião. No entanto, isso não é garantia de solução para tanto sofrimento em todo o mundo. Mas as igrejas estão lotadas, os templos, as mesquitas, e nunca se matou tanto em nome de Deus. No início dos anos 1990, os ateus eram 4% no mundo. Um número ínfimo em relação aos que acreditam em Deus. Então, levando em consideração o que as religiões pregam, o mundo deveria estar muito bem, a humanidade vivendo em paz. Desgraçadamente, nunca vimos tanta barbárie. Em nome de Deus”. 

"Com relação à vida pós-morte, aí todo mundo se apega a Deus. Gorki [Maximo, escritor russo] disse: "Deus não se busca, se cria”. E esse deus que o homem criou, o adequamos de acordo com as nossas necessidades, para o tamanho de nossa aflição. Falamos com ele, às vezes, de forma reverente, ou irreverente, infantil, de igual para igual, como se fosse um amigo. Deuses surgem e desaparecem, são de um jeito, depois de outro, desde sempre. À nossa imagem e semelhança? Sim. A gente nasce, vive, morre. Depois? Nada. Acabou”.

 

Transubstanciação 

Raul de Leoni*

Esta carne em que existo há de tornar-se um dia

Em húmus germinal, em seiva fecundante.

Decompondo-se em Pó, há de ser a energia

De vidas que sobre ela hão de viver adiante...


Será fonte, Princípio, a tábida apatia

De um movimento novo, intérmino e constante,

Sua ruína será a feraz embriogenia

De outros tipos de Vida, instante para instante.


Há de um horto florir por sobre o seu passado.

Borboletas iriais e anêmonas olentes,

Vidas da minha Morte, eu mesmo transformado...


E, assim, irei buscando a Perfeição perdida,

Vivendo na Emoção de seres diferentes 

Que a Morte é a transição da Vida para a Vida...

(* Raul de Leoni Ramos foi poeta, deputado e diplomata. Petrópolis, RJ, 1895/1926).

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