Cuidadora de 99 cães e 58 gatos pede socorro

Protetora está sendo despejada de sítio onde mora com 157 animais e não tem para onde ir
sábado, 25 de agosto de 2018
por Adriana Oliveira (aoliveira@avozdaserra.com.br)

Uns diriam ser loucura. Outros, solidão. Mas para Valéria Lima, 63 anos, o isolamento imposto pelo convívio com 99 cães e 58 gatos, num sítio quase em ruínas em Amparo, é missão de vida. Uma força espiritual, como ela explica. Ou o cruel resultado de um paradoxo: a cuidadora de tantos seres abandonados se vê, ela própria, em situação de abandono.

Já houve, mas hoje em dia não há escolha. Nem alternativa. Animais sem dono amanhecem amarrados no velho portão de madeira. Ninhadas inteiras são deixadas junto ao poste de luz em frente ao sítio. O mais novo inquilino, um agitado cão de caça sem coleira (foto), foi entregue por uma vizinha, preso apenas a uma corda improvisada com vários nós, justamente enquanto Valéria dava entrevista à equipe de A VOZ DA SERRA.

“Por favor, o senhor tente reconhecê-lo pela foto que estou lhe mandando agora. Não posso ficar com mais nenhum aqui, já tenho 157 animais”, implorava Valéria pelo áudio do WhatsApp (foto) a um morador da região que, soube ela, procurava por seu cão que fugira de casa. Pelo menos esse logo voltou para o dono.

A situação ali é dramática. Valéria está sendo despejada do sítio onde mora de favor há sete anos, desde que perdeu a casa, no Córrego D’Antas, na tragédia de 2011. Na casa levada pela enxurrada, junto com os canis que tinha acabado de construir, morreram 26 cães. Os seis sobreviventes mudaram-se com ela para o sítio, um canil abandonado no fim de uma estrada de terra íngreme e esburacada, numa localidade chamada Morro das Contas, entre o Alto do Catete e o Parque das Flores. A proprietária do sítio pediu o imóvel alegando que está sendo vendido.

Sozinha com seus 157 animais e ainda sem ter para onde ir, Valéria vive da caridade dos poucos que a ajudam: o ex-marido, que formou nova família, e alguns voluntários que lutam pela causa animal na cidade e lhe repassam ração e vacinas arrecadadas entre amigos. Ex-auxiliar de enfermagem e ex-instrumentadora cirúrgica, ela ainda não conseguiu se aposentar. Tudo o que recebe é para seus bichos, que precisam de 45 quilos de ração todos os meses.

Os cães e gatos são todos bem cuidados e saudáveis, castrados graças ao empenho pessoal de grupos de voluntários. Mas, como são muitos, não podem ficar soltos. Os mais briguentos  ficam em canis separados. Os mais sociáveis vivem numa área comum, também cercada. “Prefiro vê-los presos, porém vivos, do que livres e mortos”, augumenta Valéria. Dentro da velha casa, com plástico cobrindo o telhado para remediar as goteiras, dividem o teto com ela os mais idosos e os filhotes. Os filhotes são únicos a participarem de feiras de adoção: “Ninguém adota animais adultos”, explica.

Na entrada do sítio, à direita, uma trincheira de sacos de ração (foto) chama atenção: estão repletos de fezes dos animais, recolhidas várias vezes por dia por ela mesma, já que os canis estão com os ralos entupidos e não há como escoar a sujeira. A coleta de lixo é praticamente inexistente, e os sacos vão se acumulando a céu aberto, enquanto o caminhão da prefeitura não passa. O cenário, é claro, fica bem pior sob o calor impiedoso do verão.

Mas como uma pessoa chega a esta situação? Moradora de São Cristóvão, na Zona Norte do Rio, Valéria, gateira há muitos anos, cuidava dos bichanos da Quinta da Boa Vista.  Em 2002, ainda casada, veio morar em Nova Friburgo em busca de qualidade de vida. Instalou-se com marido e 23 gatos numa casa no Vale dos Pinheiros. Ali começou seu tormento. Vizinhos e, mais tarde, moradores de outros bairros, começaram a deixar na sua porta cães e gatos abandonados, muitos deles doentes, certos de que ela cuidaria de todos. “Como dar as costas?”, relembra, com lágrimas nos olhos. Até que, de tantos acolher, passou a ser hostilizada por vizinhos, acabando por se mudar para o Córrego D’Antas e perder tudo na enxurrada.

A subsecretária municipal do Bem-Estar Animal (Subea), Monique Malhard, avalia o drama de Valéria como preocupante. O órgão está buscando alguém que tenha um local com mínima infraestrutura que possa abrigá-la com seus animais. Além disso, a Subea sempre tenta ajudá-la de alguma forma, seja no transporte dos animais que precisam ser castrados, seja no envio de um veterinário para atendimentos de urgência, seja na inclusão dos mais jovens nas campanhas de adoção.

VEJA AQUI AS AÇÕES DA PREFEITURA

Com verba praticamente zero, a Subea conta com o esforço voluntário dos grupos de proteção de animais existentes na cidade. Neste sábado, promove mais uma feira de adoção na Estação Livre e, no domingo, participa da 4ª Cãominhada na Via Expressa. Em breve a prefeitura deve lançar um Castra-Móvel para promover castrações itinerantes e gratuitas, antecipa Monique.  

Como militante da causa animal, Monique é contra abrigos independentes: “Sobrecarrega demais o cuidador e não resolve”. Para ela, a solução passa pela conscientização ampla da sociedade sobre o problema, desde a escola. “Não se pode cobrar uma solução nem mesmo do poder público, enquanto as pessoas continuarem deixando de castrar e abandonando animais nas ruas”, afirma.

Quem puder e quiser ajudar Valéria pode deixar ração ou qualquer outro tipo de contribuição  com os responsáveis pela banca de jornais em frente ao antigo Fórum, na Praça Getúlio Vargas. Eles também arrecadam doações para Valéria e outras protetoras.

ARTIGO: Como uma protetora, em poucos anos, se vê aprisionada num pesadelo

Abrigos independentes mascaram a falta de políticas públicas para um problema moral, ético e social

Liège Copstein (editado)

“O tema do hoarding, ou acumulador, costuma despertar nas pessoas a agradável sensação de descobrir-se normal e bem adaptado aos padrões vigentes, pela simples contemplação das esquisitices alheias. E o maluco mor, o acumulador de animais, é, claro, o transgressor insano que escolhe enxergar o outro nas espécies não humanas.

A maioria das pessoas crê que a síndrome de hoarding, no caso de animais, começa a caracterizar-se quando alguém resgata ou adota mais animais do que pode abrigar em boas condições. Porém, essa posição escolhe desconsiderar completamente o contexto do abandono, da falta de políticas públicas.

A verdade é que quase ninguém decide declarar-se “protetor”. As pessoas que demonstram empatia por animais acabam identificadas como protetoras pela sociedade, é a sociedade que lhes atribui esse papel. E a partir do momento em que são assim rotuladas, além das ações espontâneas, passam também a ser permanentemente induzidas, chantageadas, coagidas a tomar mais e mais animais sob sua proteção. Animais doentes ou ninhadas são abandonados nas suas portas; parentes, amigos e até desconhecidos os procuram dizendo que, se não aceitarem mais este ou aquele, serão mortos ou abandonados nas ruas – e serão de fato.

Para esses animais também não há nenhuma outra alternativa. Não há políticas públicas, não há abrigo municipal, não há ONGs sempre abertas para encaminhá-los. O cotidiano de um protetor se transforma numa permanente “escolha de Sofia”, entre socorrer mais um sob pena de prejudicar a todos, ou simplesmente virar as costas e ignorar um pedido desesperado de ajuda.

E portanto soa absurda, se não cruel, a recomendação “não pegue mais nenhum”, entoada como um mantra por aqueles que se dispõem a ajudar o “acumulador” a se “curar”, mas não se dispõem em nenhum momento a ajudar os animais em situação emergencial.

Depois que o animal é deixado nas mãos da protetora, os leigos acreditam ou querem acreditar que ela dispõe de soluções facilitadas e quase mágicas para gerir a situação: clínica gratuitas, ração mais barata, fontes inesgotáveis de ótimos lares amorosos para onde encaminhar o animalzinho. Sentem-se tranquilos com sua consciência e é comum ouvir a afirmação “fiz minha parte”, quando não se fez absolutamente nada a não ser remover o problema inquietante de diante dos seus olhos e transferi-lo a outra pessoa, já sobrecarregada.

Refugiada num sítio fora da região mais urbanizada, a protetora é rapidamente detectada e, em pouco tempo, a propriedade torna-se o destino de todas as ninhadas indesejadas e animais velhos ou doentes da região, além dos pedidos desesperados. Ela apenas acorda para encontrar novos animais jogados em seu terreno durante a noite, ou amarrados ao seu portão; o que deve fazer? A promessa tantas vezes renovada de “não pegar mais nenhum” dissolve-se diante da crueza da situação: Deixá-los ali para que morram de fome ou frio, às portas de seu abrigo superlotado? Dificilmente.

E é assim que uma protetora, em poucos anos, se vê aprisionada num pesadelo, tendo sob sua tutela centenas de animais aos quais não pode dar sequer alimentação em quantidade suficiente ou um ambiente salubre para viverem. Alguns, quando contemplam esses abrigos miseráveis, dizem que os animais estariam melhor nas ruas.

Mas não é à toa que o conceito de “acumulador/protetor” vem sendo cada vez mais utilizado pelos setores administrativos encarregados das míseras ações públicas em prol da questão animal. Para o poder público, o abrigo superlotado de animais é a materialização, é a maior denúncia de sua péssima atuação, é a prova de que nada faz de efetivo. Aquelas mesmas dezenas ou centenas de animais, se não estivessem ali, estariam abandonados e sofrendo terrivelmente ainda de forma pior, vagando pelas ruas, porém invisíveis, porque espalhados. Concentrados num mesmo local, tornam-se uma realidade inconveniente. O que sobra é tentar criminalizar (sob a acusação de perturbar a ordem e a saúde públicas) e/ou desqualificar, como mentalmente insano, o protetor, que seria o portador de uma patologia psíquica.

Na verdade, o poder público não está se ocupando em absoluto dos interesses dos animais, e sim do incômodo que eles estão causando à comunidade humana, com sua mera existência.

Os abrigos são uma realidade imposta pelas circunstâncias, não uma estratégia proposta pelos protetores. São um paliativo extremamente insatisfatório a ser aplicado numa situação extremamente estreita de opções. Que é exatamente a situação dos animais urbanos abandonados.”

VEJA ABAIXO A GALERIA DE FOTOS COM DETALHES DO ABRIGO E BASTIDORES DESTA REPORTAGEM:

 

  • Um dos 99 cães do abrigo de Valéria (Foto: Henrique Pinheiro)

    Um dos 99 cães do abrigo de Valéria (Foto: Henrique Pinheiro)

  • Cães no abrigo de Valéria (Foto: Henrique Pinheiro)

    Cães no abrigo de Valéria (Foto: Henrique Pinheiro)

  • Um dos 99 cães do abrigo de Valéria (Foto: Henrique Pinheiro)

    Um dos 99 cães do abrigo de Valéria (Foto: Henrique Pinheiro)

  • A trancheira de sacos contendo fezes, à espera da coleta (Foto: Henrique Pinheiro)

    A trancheira de sacos contendo fezes, à espera da coleta (Foto: Henrique Pinheiro)

  • A casa do antigo canil (Foto: Henrique Pinheiro)

    A casa do antigo canil (Foto: Henrique Pinheiro)

  • As condições precárias do canil (Foto: Henrique Pinheiro)

    As condições precárias do canil (Foto: Henrique Pinheiro)

  • Plástico cobrindo as telhas, para remediar goteiras dentro de casa (Foto: Henrique Pinheiro)

    Plástico cobrindo as telhas, para remediar goteiras dentro de casa (Foto: Henrique Pinheiro)

  • A casa onde Valéria vive com os animais mais idosos e mais jovens (Foto: Henrique Pinheiro)

    A casa onde Valéria vive com os animais mais idosos e mais jovens (Foto: Henrique Pinheiro)

  • Valéria Lima conversa com um de seus 58 gatos (Foto: Henrique Pinheiro)

    Valéria Lima conversa com um de seus 58 gatos (Foto: Henrique Pinheiro)

  • Gato por trás da janela telada (Foto: Henrique Pinheiro)

    Gato por trás da janela telada (Foto: Henrique Pinheiro)

  • O fotógrafo Henrique Pinheiro em ação (Foto: Alan Andrade)

    O fotógrafo Henrique Pinheiro em ação (Foto: Alan Andrade)

  • O produtor de vídeo Alan Andrade (Foto: Henrique Pinheiro)

    O produtor de vídeo Alan Andrade (Foto: Henrique Pinheiro)

  • Valéria Lima dá entrevista a Adriana Oliveira (Foto: Henrique Pinheiro)

    Valéria Lima dá entrevista a Adriana Oliveira (Foto: Henrique Pinheiro)

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