Laryssa Frezze
– O café é amargo e azedo e queimado e é bom que você se acostume, porque a vida também não é um mar de rosas. Há açúcar e há adoçantes e, se você quiser disfarçar, fique à vontade, mas não há nada que conserte o café – propriamente dito. Então conserte essa sua careta, beba e meta o pé, filho, que eu tenho mais o que fazer.
Disse e limpou da mesa os granulados de açúcar, tão cristalinos, com um paninho úmido e sujo e uma cara de tédio e urgência. E raiva. E rancor.
Por todo o dia o café me pesou no estômago e tive azia. Mas saí de lá com a mesma urgência, como se o que me restava do dia fosse também um monte de granulados de açúcar que precisassem ser tirados da mesa de vidro. E a reação é a mesma, mecânica e entediante.
E tive pena do homem que me serviu café. Tive pena que estava amargo, assim como a vida dele, engomado naquele uniforme branco, tão ridículo, com um bonezinho igualmente branco e a mecânica frase apática repetida à exaustão: "O que vai pedir?”
Saí de lá sabendo que deveria evitar bebidas ácidas;
Que comer com pressa não me faz bem;
Que o presidente do Egito pretende travar uma batalha pela segurança (há telejornais que não descansam);
E que minhas articulações e quadris sofrem de estresse.
Há um homenzinho vermelho no sinal e, na rua, às 6.15 da manhã, há carros como loucos, correndo para cumprir as demandas. E há tanta gente no mundo que eu não conheço – e isso assusta!
Porque eu preciso do pão de cada dia e preciso sair e estar com as pessoas em trens e ônibus, como em caminhões para o abate de galinhas. E o café é amargo, porque a vida não é um mar de rosas e não importa onde se vá, há frio e dureza e o aumento do preço dos tomates.
A ciência não tem todas as respostas.
E há buzinas porque já é hora do rush. É sempre hora do rush.
É sempre impossível ser a exata e certa medida do que se quer ser, porque não há dinheiro o suficiente,
Ou tempo
Ou disposição e é preciso limpar os granulados de açúcar mecanicamente:
- Pagar as contas;
- Chegar na hora;
- Saber que houve o crime passional e que a vítima pode estar envolvida no conturbado contexto processual da luta pela diminuição do aluguel.
E da violência.
Além da culminância da reintegração de posse, o que significa ser capaz de impedir que seus efeitos nefastos atuem na vida de cada um
Que não quer saber,
Que repete o bordão,
Que quer chegar em casa, apertar um botão e sumir e mandar para o inferno, porque é oprimido, porque existir é difícil, porque o contexto não é favorável e porque a vida não é um mar de rosas.
O que vou pedir?
6.16, agora. E isso tudo em minha cabeça ao atravessar, correndo, a rua para chegar do outro lado, para cumprir o contrato, zelosa, porque ganho para isso.
Sobe-me na garganta o café amargo, do pó barato e queimado, antes de subir as escadas ao infinito dos arranha-céus, num lugar onde o céu não existe, somente o mero conceito e é o conceito que permite que se sonhe em qualquer dia desses
Sair do caos
Sair do rush
Sair do ônibus
E parar. Parar de verdade, interromper a produção maquinal e a distribuição elétrica, para que se outorgue uma escuridão geral de cinco dias, em que se possa dormir, comer e beber na exata e certa medida, sem disfarces.
Nada entre o ser e as coisas. Ser, somente.
O que vou pedir? Sossego.
*Laryssa Frezze é friburguense e cursa o 6º período de literatura
na USP, São Paulo. E-mail: lara_frezze@hotmail.com
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