CRÔNICAS - Polaroid: a forma de reflexão da luz no papel

sexta-feira, 23 de agosto de 2013
por Jornal A Voz da Serra

Laryssa Frezze

– O café é amargo e azedo e queimado e é bom que você se acostume, porque a vida também não é um mar de rosas. Há açúcar e há adoçantes e, se você quiser disfarçar, fique à vontade, mas não há nada que conserte o café – propriamente dito. Então conserte essa sua careta, beba e meta o pé, filho, que eu tenho mais o que fazer.

Disse e limpou da mesa os granulados de açúcar, tão cristalinos, com um paninho úmido e sujo e uma cara de tédio e urgência. E raiva. E rancor.

Por todo o dia o café me pesou no estômago e tive azia. Mas saí de lá com a mesma urgência, como se o que me restava do dia fosse também um monte de granulados de açúcar que precisassem ser tirados da mesa de vidro. E a reação é a mesma, mecânica e entediante.

E tive pena do homem que me serviu café. Tive pena que estava amargo, assim como a vida dele, engomado naquele uniforme branco, tão ridículo, com um bonezinho igualmente branco e a mecânica frase apática repetida à exaustão: "O que vai pedir?”

Saí de lá sabendo que deveria evitar bebidas ácidas; 

Que comer com pressa não me faz bem; 

Que o presidente do Egito pretende travar uma batalha pela segurança (há telejornais que não descansam);

E que minhas articulações e quadris sofrem de estresse.

Há um homenzinho vermelho no sinal e, na rua, às 6.15 da manhã, há carros como loucos, correndo para cumprir as demandas. E há tanta gente no mundo que eu não conheço – e isso assusta!

Porque eu preciso do pão de cada dia e preciso sair e estar com as pessoas em trens e ônibus, como em caminhões para o abate de galinhas. E o café é amargo, porque a vida não é um mar de rosas e não importa onde se vá, há frio e dureza e o aumento do preço dos tomates.

A ciência não tem todas as respostas. 

E há buzinas porque já é hora do rush. É sempre hora do rush.

É sempre impossível ser a exata e certa medida do que se quer ser, porque não há dinheiro o suficiente,

Ou tempo

Ou disposição e é preciso limpar os granulados de açúcar mecanicamente:

- Pagar as contas;

- Chegar na hora;

- Saber que houve o crime passional e que a vítima pode estar envolvida no conturbado contexto processual da luta pela diminuição do aluguel.

E da violência.

Além da culminância da reintegração de posse, o que significa ser capaz de impedir que seus efeitos nefastos atuem na vida de cada um

Que não quer saber,

Que repete o bordão,

Que quer chegar em casa, apertar um botão e sumir e mandar para o inferno, porque é oprimido, porque existir é difícil, porque o contexto não é favorável e porque a vida não é um mar de rosas.

O que vou pedir?

6.16, agora. E isso tudo em minha cabeça ao atravessar, correndo, a rua para chegar do outro lado, para cumprir o contrato, zelosa, porque ganho para isso.

Sobe-me na garganta o café amargo, do pó barato e queimado, antes de subir as escadas ao infinito dos arranha-céus, num lugar onde o céu não existe, somente o mero conceito e é o conceito que permite que se sonhe em qualquer dia desses 

Sair do caos

Sair do rush

Sair do ônibus

E parar. Parar de verdade, interromper a produção maquinal e a distribuição elétrica, para que se outorgue uma escuridão geral de cinco dias, em que se possa dormir, comer e beber na exata e certa medida, sem disfarces.

Nada entre o ser e as coisas. Ser, somente.

O que vou pedir? Sossego. 


*Laryssa Frezze é friburguense e cursa o 6º período de literatura 

na USP, São Paulo. E-mail: lara_frezze@hotmail.com


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