Crônica: o sol lá fora

A surpresa de se redescobrir criança sob uma pancada de chuva e a infância de hoje
sábado, 06 de outubro de 2018
por Alan Andrade (alan@avozdaserra.com.br)
O céu de Friburgo, visto do Bairro Suíço (Foto: Adriana Oliveira)
O céu de Friburgo, visto do Bairro Suíço (Foto: Adriana Oliveira)

Esses dias, enquanto voltava para o jornal, fui abençoado por uma dessas chuvas friburguenses que parecem enganar a própria natureza, escorrendo fria por cabelos e espinha, molhando caprichosamente a roupa que havia separado especialmente para trabalhar. Ciente do irreparável, lembrei-me de um dito popular que falava algo como “quem está na chuva é para se molhar” - e uma vez que já me encontrava em tão penosa situação, resolvi correr como criança pelas poças d’água da Praça Getúlio Vargas, no empenho de me entregar ao máximo àquela sensação indescritível de voltar à infância, de ser menino, de brincar.

Fiquei pensando no que as “novas crianças” estariam fazendo naquele exato momento. Talvez estivessem brincando em seus computadores de tecnologia de ponta, imersos em games de recursos gráficos inimagináveis, curiosamente desenhados por crianças da geração Atari, que disputavam um console de dois botões para desafiar os dentes afiados dos crocodilos de Pitfall. No entanto, a despeito do fascínio provocado pela então revolucionária animação, sempre havia tempo para “brincar lá fora” quando a chuva desse uma trégua. Afinal, até hoje não foi inventado nada que substitua as tradicionais brincadeiras de criança, como impinar uma pipa ou lançar ao chão o pião que gira na velocidade de nossos sonhos.

É claro que tecnologia temos para isto – e não é preciso ter uma mente imaginativa de Santos Dumont para prever um cenário em que crianças subam em árvores gráficas projetadas em um dos cantos da sala de casa, sem precisarem se expor a um mundo assaltado pelo medo e pelo descaso com a beleza da vida. Contudo, como a presente geração X Box faria para reproduzir a sensação de pisar na grama com pés descalços, de ganhar uma preciosa e quebrada bola de gude em um jogo emocionante – com direito à torcida dos amigos de escola -, de sentir o cheiro da terra molhada pela chuva que acabou de cair? Nem mesmo minha imaginação de criança poderia vislumbrar tal feito.

É inegável que os incessantes avanços da tecnologia contribuem cada vez mais com a melhoria de nossa qualidade de vida – em quase todas as suas esferas – e que as crianças de hoje recebem importantes estímulos através desses jogos, de desafios cada vez mais complexos.

Pode ser que o desejo de ir “brincar lá fora” venha se esmaecendo na irrefreável força do tempo, cada vez mais ágil e inclemente, ou se dissolvido quase que por inteiro na frialdade inorgânica da tempestade de bits que inundam o imaginário dessa nova infância, tão inteligente e um tanto carente do Sol que esquenta a pele, que arde feito bola de queimada, que clareia o jogo de amarelinha desenhado à giz no chão, que nenhuma chuva será capaz de apagar.

 

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