Crime e compadrio

segunda-feira, 21 de setembro de 2009
por Jornal A Voz da Serra

Maurício Siaines (*)

O compadrio é parte das relações sociais que compõem o fenômeno do coronelismo, constante na história do Brasil, expresso muito claramente na política, mas presente em diversos outros setores da vida social. O chefe rural precisa de um conjunto de pessoas, nem sempre consanguíneos para constituir o que a socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz chamou de parentela, grupo de parentes e agregados do mandante do domínio rural (Maria Isaura Pereira de Queiroz, O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios, São Paulo, Editora Alfa-Omega, 1976). Existiriam duas maneiras de ascender socialmente: desbravar e ter posse de terras ou ligar-se a algum chefe local, que, mais tarde, depois da criação da Guarda Nacional, em 1831, passou a ter o título de coronel.

Maria Isaura observa ainda que a solidariedade dentro da parentela é muito forte, tanto horizontalmente, isto é, entre pessoas da mesma condição socioeconômica, quanto verticalmente, entre os que são mais e menos ricos e poderosos. É essa relação solidária que pode ser chamada de compadrio. E essa solidariedade significa também proteção recíproca. E esta cultura formou também as cidades e se espalhou por todas as relações sociais, principalmente aquelas que envolvem poder.

É interessante observar que o compadrio pode acobertar ações que, sob um ponto de vista estritamente legal, seriam criminosas. Crime é um conceito, é algo definido pelo Código Penal, e alguns hábitos e práticas sociais, às vezes tidos como normais, podem ser definidas como crimes com muita facilidade. A violência doméstica, por exemplo, o estupro e o espancamento de mulheres por seus companheiros legítimos. São coisas que estão vindo à tona como resultado de um longo processo de emancipação da mulher, através de atitudes individuais e de movimentos sociais. Há 40 anos, certamente existiam muito mais atos violentos contra as mulheres que ficavam acobertados por relações de compadrio.

Além do compadrio ser forte em nossa vida social, há um outro elemento, similar a ele, que é aquele que está por trás da expressão popular deixa quieto!, volta e meia repetida em rodas de conhecidos, quando as conversas começam a se dirigir para questões que não convém serem remexidas.

Deixa quieto! é o que muita gente, diz para si própria quando percebe a existência de um conluio de favorecimento, de corrupção e outros crimes. Muitas vezes, deixar quieto é também uma maneira de se proteger. É perigoso saber de certas coisas, melhor deixar quieto.

Por causa deste domínio da inclinação a deixar quieto, é mais fácil os esquemas criminosos serem desmontados por forças externas à ordem social local, como foi a Polícia Federal e os agentes do Ministério Público e das corregedorias das polícias estaduais, no que ficou conhecido como Operação Roubo S/A – Saque Noturno, realizada em Nova Friburgo há dez dias.

Pouco tempo depois da operação de desmonte do sistema de acobertamento e cumplicidade, uma leitora de A VOZ DA SERRA escreveu ao jornal uma carta em que manifesta sua esperança de que a operação possa elucidar um crime adormecido há quase quatro anos, "o homicídio que tirou a vida do meu pai, um policial honesto e digno de todos os elogios e reconhecimento por parte de toda a sociedade e meio jurídico”, que "estava trabalhando nesta causa e em muitas outras e por isso perdeu a vida”. A leitora a fala no "dever que a lei impõe”. E talvez aí esteja um dos caminhos para se superar esse problema da violência e da criminalidade, valorizar a lei. E a lei se baseia em princípios de igualdade entre os cidadãos, não reconhece qualquer espécie de distinção social, nem admite acobertamentos. É compreensível que muitos queiram deixar quieto por medo, como ocorre nas favelas dominadas por traficantes de drogas. Mas a questão está em vencer os ordenamentos sociais que levam as sociedades a protegerem pessoas que atuam de forma lesiva ao bem comum. E não só com operações da Polícia Federal, ou intervenções parecidas. Elas são importantes, mas não resolvem os problemas, que estão enraizados em um modo social de ser, fundado sobre a relação íntima entre deixar quieto e o compadrio coronelista.

(*) Jornalista – mauriciosiaines@gmail.com

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