Joia rara do cinema mudo (1927) O Homem Que Ri, baseado na obra de mesmo título, de Victor Hugo, é a história de um menino de nome Gwainplalyne, herdeiro de grande fortuna, usurpada através de intrigas palacianas. Vendido a um “comprachicos” (traficante de crianças), o menino foi vítima de uma criminosa cirurgia que consistiu em cortar-lhe a musculatura da boca de modo a imprimir-lhe um “eterno sorriso” com o objetivo de fazer do infante uma atração circense rentável.
Partindo deste espetáculo consternador, segue a trilha de outras obras do mestre, exímio literato, sempre sensibilizado com as questões da violência contra crianças.
Quasímodo, rapaz portador de necessidades especiais em O Corcunda de Notre Dame, vivia escondido dos olhos do mundo, sem os cuidados adequados para alguém em sua situação. E o que dizer da menina Cosette, filha de mãe solteira, em Os Miseráveis? A pequena sofria abusos por parte de seus tutores exercendo trabalho acima de suas capacidades fisicas na estalagem de seus algozes. Preconceito, tortura abuso, injustiça. Estes são os enfoques.
Na Idade Média, por exemplo, encontramos uma sociedade feudal, em que o suserano possuía poder de vida e de morte em seus domínios, instituindo moeda e costumes próprios. Nesta época, a criança era considerada um adulto incompleto, portador de gérmen maligno que deveria ser exterminado por meio de disciplina rígida e trabalho duro nos campos (do suserano, claro).
Outra situação deu-se na escravidão brasileira: a criança escrava de 6 a 12 anos trabalhava quase como adulta. A partir daí eram consideradas sexualmente maduras. Chamamos hoje de pedofilia o que há um século era perfeitamente normal.
Podemos depreender destes relevantes legados que os maus tratos contra as crianças não são fatos do mundo moderno como querem os alarmistas. Muito pelo contrário, ver a criança como um futuro cidadão, possuidora de direitos, é que é idéia nova.
A Declaração dos Direitos das Crianças da ONU, a Constituição Brasileira de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90) são instrumentos que estabelecem direitos específicos para a criança. Ainda que polêmicos, estes dispositivos mostram que a criança não é mais o pequeno adulto medievo. É necessária uma boa dose de paciência histórica, pois passar de séculos de violência institucionalizada ao Estado de Direito é um longo caminho.
Grande parte destas mudanças de conceitos acerca do universo infantil devemos à ciência. Destaco aqui a figura de Jean Piaget, epistemólogo suíço (1896-1980). Ele nos mostrou as particularidades do desenvolvimento humano desde a mais tenra idade até a fase adulta. A memória, percepção, aprendizagem, resolução de problemas, raciocínio e compreensão, esquemas e arquiteturas mentais, são focos da educação moderna. A criança (o homem) deixa de ser visto como uma “caixa preta” na qual não se enxerga o que ocorre dentro dela, como querem os behavioristas.
E com aspas para Milton Nascimento, encerro: “Há que se cuidar do broto para que a vida nos dê flor”.
(*) – Jornalista, escritor e autor de vários livros. Acadêmico.
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