A cada minuto que passa, as notícias aterradoras que circulam no mundo invadem sem qualquer restrição nossas intimidades. Tenho um amigo que diz: “Estou vendo televisão, começou qualquer jornal, fujo da sala que vem desgraça”. E, atualmente, ponha desgraça nisso. Depois do caso Bruno, que já começa a sair de moda, são tantos casos, que muito rapidamente casos recentes viram antigos e são esquecidos. O caso atual, e também arrepiador pelos desdobramentos que fatalmente virão, é o de um jovem, na flor da vida, fazendo também algo errado, que morre atropelado. O atropelador estaria participando de um pega em local interditado à circulação de veículos. Os PMs liberam o carro do atropelador em fuga. Seu pai declara ter adiantado mil reais dos R$ 10 mil pedidos por eles para acobertarem o crime, e teria, junto com um outro filho, levado o carro a uma oficina, em plena madrugada, devidamente escoltados pelos PMs, para ser lanternado com a máxima urgência. O dono da oficina, vizinho e amigo do pai do atropelador, inicia o serviço logo logo, como se fosse uma encomenda normal…
De tanta coisa errada nesse caso, o que sempre chama a atenção da mídia, que se esqueceu de tudo, é o caso da corrupção policial, fato que acho absolutamente estranho. Porque corrupção policial? Corrupção geral seria o termo mais correto. Se o PM recebeu, alguém ofereceu, e se ofereceu foi por algo errado que estava cometendo ou cometera. Fato que hoje não escandaliza mais ninguém, infelizmente.
Temos aí mais um CASO a ser aprofundado, não apenas sob o ponto de vista criminal, sem se ater ao sentido da punição exemplar dos culpados. Tão ou mais importante será o aprofundamento da análise dos fatos sob a perspectiva sociológica. Ora, é óbvio que, confirmadas as acusações, a população espera que os PMs sejam liminarmente expulsos da corporação e condenados; o atropelador fugitivo, condenado por homicídio (culposo ou doloso, como o digam as investigações); seu pai, por corrupção ativa; seu irmão, por adulteração de provas etc., sendo necessário também indagar sobre a responsabilidade do lanterneiro, dono da oficina. Se aqui fosse sério, não se deveria parar por aí, teríamos que prosseguir e nos aprofundar nos estudos. Por que isso aconteceu?
Cumpre que os especialistas se perguntem: estaríamos diante de um fato inusitado ou ele faz parte de como se desenvolvem as ‘relações’ em nossa sociedade? E se o jovem atropelado e morto não fosse filho de quem era? Ao ser atropelado, estava ele em local correto? E o comportamento da família do atropelador, para livrá-lo da responsabilidade? Em se tratando dos PMs, estaríamos diante de um caso isolado, desvio individual de caráter de dois maus policiais, ou dos efeitos da chamada corrupção sistêmica, favorecida pelo próprio sistema social e pela forma como casos assim são encarados?
Façamos hoje, com seriedade, dias depois dos fatos, uma profunda reflexão das condutas elencadas. Talvez resolva o problema de muitos de nós, os bons, tomar o pai do atropelador e os PMs (acusados de corrupção ativa e passiva, respectivamente) como exceções à regra das relações sadias que norteariam as práticas públicas e privadas entre nós.
As manifestações de indignação podem servir também para expiar culpas. De um lado, os bons, de dentro e de fora; de outro, umas poucas ‘maçãs podres’. ‘Podres à posteriori’… Simples. Bom caminho para que as coisas permaneçam como são. No setor público, todos estariam isentos de culpa, exceto os dois PMs; na sociedade, à exceção do pai do atropelador, idem.
Em suma: a teoria das ‘maçãs podres’ (de natureza meramente moralista-individualista) transforma-se em ótimo biombo para onde empurrar as verdadeiras mazelas da sociedade e das instituições. Com isso, foge-se da análise da corrupção sistêmico-organizacional, fenômeno social, a qual, se procedida, traria à baila responsabilidades e culpas outras. Uma falácia conveniente, bastante rica para sociólogos de plantão emitir conceitos puramente fisiológicos e sem qualquer conteúdo, ou seja, ser paralisante sobre os fatos ocorridos em todos os aspectos.
Para não parecer que estou à favor da corrupção, pelo contrário, sou radicalmente contra qualquer coisa que tente burlar a legislação ou levar vantagem a qualquer preço, pois assim, faço a pergunta que todos querem fazer: O que fazer contra a corrupção policial?
Respondo sem a menor convicção, mas certo de que não há fórmula precisa, como na confecção de um bolo. Em geral, as propostas de solução para o problema vão mais ou menos na mesma direção: proceder a uma depuração radical, com a punição rigorosa dos corruptos e a sua pronta expulsão dos quadros da polícia para que não ‘contaminem’ os bons; selecionar candidatos a policiais honestos (‘sem vícios’ – viriam de onde?), e treiná-los no marco da lei e dos direitos humanos. Para isso, deveriam ser criadas ou reforçadas as corregedorias e ouvidorias, e reformulados os currículos das academias. Por outro lado – isso não se fala –, os policiais deveriam ser remunerados condignamente. Em suma, verdadeira receita de bolo, palatável a eruditos, informados e leigos.
Os grandes estudiosos do assunto são unânimes em dizer: Em se tratando da atividade policial, o que chamam de depuração da ‘banda podre’ constitui-se numa falácia, grosseira simplificação. Ainda que o caminho fosse esse, ficaria faltando saber, antes: quem são os corruptos da polícia? Quantos e quais são? O que é um candidato a policial ‘sem vícios’? Um treinamento adequado para fazer o quê? Policiar onde? Qual o público alvo?
Antes de partir para o enfrentamento da corrupção, é mister que se esteja cônscio de sua complexidade e das diferentes perspectivas a partir das quais se pode abordá-la. É possível que estejamos falando de corrupção como uma questão filosófica, especulando sobre valores morais e éticos. Ou vendo-a de uma perspectiva econômica, como um subproduto do capitalismo. Ou como questão político-cultural, indagando, por exemplo, por que em determinados países a ‘grande corrupção’ é punida com penas duras, incluindo – sai pra lá – a pena de morte, e em outros com penas brandas, quando chega a ser punida. Ou como tema criminal, quando a corrupção é vista simplesmente como uma infração da norma penal, descartadas as considerações filosóficas, econômicas e político-culturais, como é comum acontecer no Brasil.
Assim, pensar em enfrentar a corrupção de forma reativa, tendo em mente apenas a racionalização do direito penal, é definitivamente uma atitude reducionista. O Código Penal é um instrumento formal, tipificando condutas individuais em abstrato. Acontece que estamos falando de relações concretas, que explicam a corrupção muito mais como um sistema de vasos comunicantes. Na sociedade brasileira, por exemplo, além do peculato, “que consiste na apropriação, pelo funcionário, de dinheiro ou outros bens públicos” (Conferir Art. 312 do Código Penal); da extorsão, “que consiste na obtenção de vantagem com o uso da violência ou grave ameaça” (modalidade muito praticada por maus policiais (Conferir Arts. 158-160), a legislação penal distingue formalmente entre ‘corrupção passiva’, crime cometido por servidor público, que consiste em “Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem” (Conferir Art. 317) e ‘corrupção ativa’, crime cometido pelo cidadão comum, consistente em “Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício” (Conferir Art. 333). A legislação ainda distingue a concussão, cuja diferença da corrupção passiva reside no fato de o funcionário ‘exigir’ a vantagem.
Há quem acredite sinceramente que a corrupção policial é um problema em si mesmo, resultado de desvios individuais de caráter, como se cada policial fosse uma ilha, e o seu comportamento não pudesse ser condicionado, para o bem ou para o mal, pelo contexto e pelos interesses internos e externos, de dirigentes, superiores, colegas e setores da própria sociedade. Esperamos – e seria bom que isso não fosse utopia – que uma couraça moral que revestisse os policiais os tornasse infensos a configurações sociais em que os valores morais não tivessem prevalência. Há policiais assim – e muitos –, como há pessoas assim em qualquer setor de atividade. Que bom se fossem todos!... Portanto, enfrentar a corrupção policial sem fazer caso de suas raízes – onde vive o policial, saber o que o aflige – e dos múltiplos fatores que a condicionam em determinado contexto, é atitude que, antes de ser equivocada, é incompreensível. Ou compreensível, se o objetivo inconfessável dos administradores da segurança pública e da polícia é fugir à própria responsabilidade pelos desacertos resultantes muito mais da má gestão – principalmente da fiscalização – do que de outra coisa. Mais fácil pinçar, aqui e ali, indivíduos supostamente desprovidos de moral e jogar neles todas as culpas do sistema. Como se, dentro das instituições (e isto é válido para o setor público em geral), só permanecessem os honestos.
Boa receita para não resolver o problema.
Celso Novaes
Diretor de Integração Institucional - CONSEG
Texto baseado no artigo de autoria de Jorge da Silva ex-Ch do EM/PMERJ: “Corrupção Policial e a Teoria das Maças Podres”
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