Maurício Siaines (*)
No romance O sertanejo, de José de Alencar, publicado em 1875, aparece a relação idealizada entre um poderoso dono de terras e o herói da história, um intrépido homem do sertão, que corre riscos, enfrenta os perigos apresentados pela natureza ou pelas lutas em que se envolve, saindo sempre incólume de todos os desafios. A história se passa no ano de 1743 e, ao final, o intrépido homem do sertão, usando de um ardil e apoiando-se na própria coragem, salva o capitão-mor Gonçalo Pires Campelo e sua família. Dá-se, então, entre o fazendeiro e o sertanejo o seguinte diálogo:
- E para si, Arnaldo, que deseja? insistiu Campelo.
- Que o sr. Capitão-mor me deixe beijar sua mão; basta-me isso.
- Tu és um homem, e de hoje em diante quero que te chames Arnaldo Louredo Campelo.
Está aí, em uma história escrita em 1875, tratando de uma época passada, a definição de uma relação social: o sertanejo é um bravo e é também absolutamente submisso ao grande proprietário rural. Como remuneração pelo risco que corre é concedido a ele o direito de usar o nome do dono da terra.
É interessante refletir sobre esse direito. Em primeiro lugar, quem o concede é o proprietário rural, como se fosse um senhor feudal; em segundo lugar, é preciso entender que o que o sertanejo conquista é o direito a fazer parte de uma espécie de nobreza, através do sobrenome que lhe é dado usar. Em suma, não está presente nesse direito o princípio da igualdade. O sertanejo não se torna igual ao senhor, mas um subordinado especial, um compadre, que deve obediência ao outro, que lhe é superior. E essa subordinação é desejada pelo sertanejo que, depois de toda a luta, quer apenas beijar a mão do senhor, que ele reconhece como tal.
Em 1831, entre a história contada no livro e a época em que ele foi escrito, foi criada a Guarda Nacional, que conferiu aos chefes rurais patentes iguais às dos militares, sendo a maior delas a de coronel. Assim se deu nome a uma antiga relação social, que ficou conhecida como coronelismo, que se transferiu do campo para as cidades, principalmente através da política, em nome da busca da governabilidade, em diversos momentos da vida do país.
Nessa relação, tal como no romance de José de Alencar, quem concede o direito é o coronel. Ele não é inerente ao cidadão e está muito longe do princípio de igualdade perante a lei. Por este motivo, os coronéis e seus afilhados nunca se sentem transgressores quando fraudam licitações, arranjam empregos ilegalmente ou cometem outros crimes. A lei deles é outra, baseada no valor maior da submissão ao chefe.
Diversas relações sociais - e mesmo jurídicas - se desenvolveram e sedimentaram dentro desse modelo coronelista. E tudo deu no que deu, nesses espetáculos, ultimamente representados pelos senadores, a que temos assistido. Superar essa relação viciosa é o grande desafio. Dilma, Serra, Marina, Aécio, Ciro, nenhum deles poderá contribuir para alguma mudança, qualquer que seja, enquanto não nos libertarmos do coronelismo e fizermos valer os princípios da cidadania, dentre os quais o de igualdade é fundamental.
(*) Jornalista
mauriciosiaines@gmail.com
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