Convite ao desapego consciente

terça-feira, 19 de abril de 2011
por Jornal A Voz da Serra

Em meio à violenta turbulência emocional que se seguiu ao massacre dos estudantes em Realengo, no Rio de Janeiro, não faltaram pessoas tentando compreender que tipo de perfil psicológico seria capaz de cometer tamanha atrocidade. Diversos adjetivos e diagnósticos mais ou menos técnicos foram empregados apressadamente, movidos na maioria dos casos pela urgência em minimizar a perturbação e o desconforto de estarmos falando de uma pessoa que, simplesmente, fugia aos mais óbvios estereótipos.

Louco, psicótico, psicopata... Palavras repetidas e tornadas vagas dentro de um discurso leigo, voltado acima de tudo a erguer uma barreira de separação entre nós, receptores chocados da notícia, e ele, Wellington Menezes de Oliveira, autor da chacina. Afinal incomoda, e muito, acreditar que pessoas ditas normais possam, à margem de qualquer previsibilidade, agir de maneira tão destrutiva.

Uma característica fundamental do assassino, no entanto, parece não estar sendo suficientemente considerada: ele tinha a consciência de que iria morrer, ao fim de seu ataque. Não haveria a possibilidade de sair vivo daquela escola, de forma que restava apenas saber se ele próprio iria se matar, ou se seria abatido pela força policial. Tal certeza o levou, inclusive, a deixar uma carta. Era, portanto, um suicida, e é neste aspecto que tem origem toda a dimensão alcançada por suas atitudes.

A abreviação consciente da própria existência é, a rigor, um dos maiores paradoxos da humanidade. Nela é possível encontrar traços extremos de coragem e/ou covardia, da mesma forma como sua trajetória pode passar por atitudes que vão desde as mais nobres e altruístas às mais egoístas, apaixonadas ou bárbaras. Tudo isso graças a uma poderosa e perigosa característica compartilhada por todos aqueles que, por qualquer razão que seja, se percebem na iminência da morte: o desapego.

Tornou-se famosa a máxima de Johann Goethe, segundo a qual “perigoso é aquele que não tem nada a perder”. De fato, toda a ordem social, para que seja mantida, depende deste poderoso inibidor espiritual que é o apego coletivo às coisas do mundo. Mais do que qualquer texto constitucional, vive-se sob a lógica do plantar e colher, dos atos e suas consequências. Quer consumir? Quer ter filhos? Quer ser feliz e ter saúde? Ótimo, então trabalhe, siga as regras, e controle seus próprios impulsos.

Sim, pois é comum a todo ser humano experimentar sentimentos fortes. Amor, paixão, libido, raiva, angústia, desespero... Somos todos animais, em última análise. Todavia, a ideia de um amanhã, os vínculos de responsabilidade para com o próximo, ou a ainda a repetição mecânica de rotinas comportamentais inibem tais impulsos, e guiam o espírito pelos caminhos da sustentabilidade e da convivência pacífica. “Conte até dez”, “respire fundo”, “não haja por impulsos”...

Tal inibição, no entanto, não se aplica a alguém que rompa os vínculos com o apego. A morte está próxima ou já não assusta mais, de forma que já não é mais preciso plantar para o amanhã, nem tampouco temer as consequências dos próprios atos. O espírito subitamente se liberta, escapando rumo a uma dimensão na qual tudo parece ser possível, e, por isso mesmo, onde as tentações e os perigos tornam-se exponencialmente mais potentes.

É, todavia, somente nesta condição que uma pessoa tem meios de encarar a própria existência e buscar nela um sentindo maior — que extrapole a mera ocupação pela sobrevivência. Não é de se admirar, portanto, que a imensa maioria das religiões pregue e convide ao desapego. Contudo, há que se recordar que essas mesmas ideologias defendem o amadurecimento espiritual como única via saudável para se viver a abnegação. E não é sem motivo. Um homem que eventualmente experimente tamanha liberdade espiritual pela via da alienação, não seria em nada diferente de uma criança brincando com uma arma carregada.

Exemplos não faltam, para o bem ou para o mal. Homens desapegados explodiram os próprios corpos em meio a aglomerações, levando tantos outros consigo. Homens desapegados arremessaram aviões de guerra contra encouraçados, e aviões comerciais contra edifícios. Homens desapegados invadiram escolas e assassinaram crianças inocentes, destinadas a um dia serem avôs e avós de pessoas que jamais chegarão a nascer. Por outro lado, homens igualmente desapegados tornaram-se mártires de causas humanitárias, ou dedicaram suas vidas desinteressadamente aos necessitados.

Paradoxo. Assim como qualquer ferramenta, o desapego pode ser maravilhoso ou destrutivo, a depender de que maneira é experimentado e vivido.

Infelizmente é tarde demais para dizer tudo isso a este jovem Wellington, que em sua despedida terrena se dedicou a interromper linhagens inteiras, ferindo todo o cosmos de maneira interminável e que nenhum de nós seria capaz de mensurar. Contudo, é oportuno e imperativo orientar a todos os que buscam significados maiores para as próprias vidas, lembrando que são muitas as maneiras de viver o desapego em benefício de causas mais elevadas.

Suicídio é algo de muito, muito triste, além de ser o desperdício de uma virtude maravilhosa. Já chega de tanta dor... Sejamos mais criativos e úteis. O mundo precisa demais de gente como Francisco de Assis, Martin Luther King, Herbert de Souza...

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