Conheça o Conenfri — Coletivo Negro de Nova Friburgo

Neste domingo comemora-se o Dia Nacional da Consciência Negra
sexta-feira, 18 de novembro de 2016
por Ana Blue
Paulo Lourenço e Roberta Dutra (Foto: Henrique Pinheiro)
Paulo Lourenço e Roberta Dutra (Foto: Henrique Pinheiro)

Cheguei atrasada. É costume meu, às vezes — ou quase sempre — mas, dessa vez, as pessoas que me esperavam lá não eram conhecidas minhas. Então, eu devia ter o mínimo de dignidade de chegar na hora que eu marquei, certinho, mas, caramba, em Friburgo choveu tanto essa semana, tanta roupa nem molhada nem seca no varal fazendo bodas de beijinho, tanta rinite, tanta sinusite, tanta amigdalite, tudo tanto, meu Deus… que ao primeiro sinal de sol no céu eu liguei minha Brastemp e me atrasei 15 minutos. Que vergonha da minha raça de sagitário; metade humana, metade besta.

E no jornal, quando cheguei, encontrei as melhores e mais radiantes energias com quem lidei naquele dia: Paulo Lourenço — perguntei a um amigo: “Você conhece um professor chamado Paulo Lourenço? Cara, ele é foda, cara!”; ao que ele responde: “Blue, tou pra dizer que quando a gente conhece um professor chamado Paulo Lourenço a gente nunca mais esquece!” —; a Robertinha, que eu fiquei aqui, tanto tempo pensando num elogio que valesse, que no fim não achei nenhum à altura; e o Weder — “Vê se pode, moça, negão bonito desse e com nome de alemão!”. A gente ficou bem uma hora e meia naquele papo gostoso e reparador, desses que dignificam a gente, e tem tanta coisa nesses áudios no gravador que muita coisa vai ficar só na memória… e é mesmo uma pena. Então, eu digo: a melhor maneira de conhecê-los, é conhecendo-os. 

Roberta Dutra é campeã de jiu-jitsu, e depois de ter se mantido três anos consecutivos como a melhor atleta do estado, foi representar o Brasil no Japão. É mãe, é trabalhadora, é linda e sorri o tempo todo — um sorriso polido, mas que ilumina tudo em volta. Weder de Oliveira é assessor parlamentar, bonito também, soube pouco dele porque ele tinha compromisso, e Paulo Lourenço, o PC, que é professor de sociologia no Ienf. Eles são alguns dos membros do Conenfri — o Coletivo Negro de Nova Friburgo, iniciativa que surgiu em março e veio tomando forma desde então, culminando com o lançamento oficial, há duas semanas.

Pergunto, claro, a situação da população negra em Nova Friburgo. E PC responde sem piscar: “Friburgo é uma cidade racista, escravocrata, ela tem isso entranhado ainda. Conselheiro Paulino tinha pra mais de mil escravos, o Paissandu era o pelourinho de Nova Friburgo. E desde que o mundo é mundo, os escravos bonitos iam fazer serviços de casa, servir aos senhores, inclusive sexualmente, e os feios pra lavoura, trabalhar até morrer. E assim segue, o negro sendo discriminado de todas as formas até hoje. O afastamento da população negra do centro da cidade foi uma política deliberada do governo na década de 70. A expansão daqueles bairros, São Jorge, Floresta, foi promovida exatamente para manter a população negra à parte. E em casas sem estrutura nenhuma, tanto que muitas ruíram em 2011. Na capa da revista, na melhor loja do shopping, a gente ainda não se vê lá. A gente vê você, que é branca, bonita, tem a estampa na padronagem. Entre você [aponta pra mim] e Robertinha, as pessoas vão contratar você e pedir a Robertinha pra voltar amanhã. E é uma luta de classes, não só racial. Se eu tenho dinheiro, eu sou bem tratado, se eu chego de terno em algum lugar eu sou bem recebido, mas se eu chegar de chinelo vão me olhar de cima a baixo. A população negra aqui sempre foi muito maltratada, mas a gente vai reparar isso. O espaço está aí e nós vamos ocupar, nos organizando. Por isso, o coletivo: pra somar as forças”, diz. E Weder complementa: “Você se surpreenderia com a quantidade de negros com formação, qualificação, jornalistas, advogados, professores... e que não estão exercendo a profissão porque não têm espaço”. Roberta lembra, também, de quando estava se especializando num curso de maquiagem e foi impedida pelo professor de levar uma modelo negra para maquiar. “Pele negra tem identidade, tem que ter um cuidado diferente com ela, é outra estampa. E é a pele que eu quero maquiar, e não podia maquiar no curso? Nem a formatura eu fiz”.

O coletivo, segundo Weder, pretende fazer um trabalho itinerante. A ideia não é, a princípio, ter uma sede institucional, mas levar o coletivo até os bairros, procurando lideranças nessas regiões. “Quando nos escravizaram, diziam que beber leite e comer manga matava, para que o homem feito escravo não se metesse a beber o leite, que era caro aos senhores. E se ele bebesse, morria mesmo, porque os capitães matavam. Vai ser sempre assim? Beber leite mata negro? Sair de bermuda e chinelo mata negro? Não! Chega. É esse o nosso grito. Chega de racismo!”. 

Nós, brancos, e nossas metades besta. Sempre atrasados.

Foto da galeria
Weder de Oliveira
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TAGS: movimento negro
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