Maurício Siaines
Valcir Ferreira é um personagem de Nova Friburgo em um enredo de que pouco se fala, mas é muito mais comum do que se pensa. É um compositor, com carteira do sindicato, que vez por outra recebe algum dinheiro por direitos autorais. Mas é daqueles compositores populares, que trabalham a vida inteira em diversos ofícios e não desistem da luta para conseguir um dia ter uma música de sucesso que os torne conhecidos.
Em dezembro de 1998, conseguiu gravar seu primeiro CD, Amor Ardente, lançado no Clube de Xadrez, como pagamento por serviços de publicidade prestados a uma campanha eleitoral. O segundo CD, Samba de Raiz, teria o lançamento em janeiro de 2011, adiado em função da tragédia das chuvas. A entrevista de Valcir para A VOZ DA SERRA, aconteceu na sexta-feira, 16 de dezembro, na sede da Associação Friburguense de Imprensa. Pouco antes, na porta do Centro de Arte, diversas pessoas pararam para cumprimentá-lo, entre elas, Júlio César Seabra Cavalcanti, o Jaburu, que o definiu como “um guerreiro”, depois de ambos comentarem o episódio em que o Gama (Grupo de Arte, Movimento e Ação) cedeu ao grupo de Valcir o espaço que utilizaria para que este se apresentasse, em evento que lotou o espaço.
Sair com Valcir da Praça Getúlio Vargas e seguir pela Avenida Alberto Braune é empreitada sujeita a retenções a todo momento. Diversos conhecidos param-no para conversar um pouco: um vereador, dois antigos jogadores de futebol, gente de toda espécie. Abaixo, trechos da conversa.
A VOZ DA SERRA – Conte um pouco de sua história.
Valcir Ferreira – Nasci no Rio de Janeiro, no bairro de Bangu, em 1949. É uma história interessante: meu pai, Sebastião Martins Ferreira, trabalhava na [Estrada de Ferro] Leopoldina, minha mãe morava aqui em Nova Friburgo, em Riograndina. Em uma de suas viagens no trem, meu pai parou um dia na estação de Riograndina e viu aquela moça junto com a patroa, fazendo compras na vendinha, e gostou. Era Idalina Souza, com quem se casou. Assim que se casaram foram para o Rio de Janeiro e, depois, houve um problema: meu pai conheceu um alguém lá e começou a deixar minha mãe de lado. Ela, então, voltou para Nova Friburgo, em Riograndina, onde Maria Estela, a filha de Jacira Borges, sua mãe de criação, acolheu de novo minha mãe comigo e esperando minha irmã. Eu deveria ter uns 3 anos.
AVS – Então, você é daqui.
Valcir – Eu sou friburguense. Depois, minha mãe veio trabalhar na papelaria do Dominguinhos, aqui na Praça [Getúlio Vargas]. Daí ela saiu e foi trabalhar como cozinheira no Hotel Schumacher [no Suspiro], onde foi tratada muito bem. E aí, minha mãe me colocou na creche da Legião Brasileira de Assistência (LBA), que funcionava na Rua Augusto Spinelli. E fui criado ali, enquanto ela trabalhava para pagar a creche, que era uma mixaria na época, e o aluguel de um quartinho lá em Olaria, na Avenida Júlio Thurler, número 15, fundos. Morei ali até casar.
Nesse meio-tempo, comecei a trabalhar. Estudava no Colégio Padre Aba, em frente à Rua Minas Gerais, onde depois veio ser a fábrica de agulhas. Fui trabalhar no Cinema São Clemente, que existia em Olaria. Comecei trabalhando como faxineiro, com o falecido palhaço Zé Pipoca. Era um personagem do folclore do bairro de Olaria.
AVS – E você tinha que idade quando foi trabalhar no cinema?
Valcir – Uns 12 anos. Depois o Zé Pipoca me apresentou para seu patrão, que era o Clarindo Carestiato, que veio a ser o dono dos prédios da Galeria São José [na Avenida Alberto Braune]. Naquela época havia, aqui em Nova Friburgo, seis ou sete cinemas. Havia o Cine Santana, no Cônego, o Cine São Clemente, em Olaria, o Marabá, no Paissandu, o São José, o São Luís, o Cinema Eldorado e tinha o Cinema Leal. Deste eu não me lembro porque eu era menor, mas todo mundo fala dele.
AVS – Você era criança quando foi trabalhar no cinema. E trabalhou lá quanto tempo?
Valcir – Trabalhei no cinema até uns 20 anos de idade. Só em Olaria.
AVS – E você viu muitos filmes?
Valcir – Muitos filmes. Naquela época havia filmes proibidos mas, como eu trabalhava lá, podia ficar escondido lá em cima, na máquina. Ficava, então, ali escondido, vendo o operador passar os filmes e ele veio a me ensinar o trabalho. Era o Luís Constantino e mora hoje lá em Santa Bernardete.
AVS – Fazendo as contas, você trabalhou no cinema em Olaria até mais ou menos 1969. Como era Nova Friburgo nessa época da sua juventude e como era o cinema para você?
Valcir – Era uma coisa muito gostosa, o cinema, Olaria com uma praça bonita com muitas flores e muitas árvores. A Faol era em Olaria, onde hoje é a Autran. Hoje está em Conselheiro Paulino. Era muito bom: Olaria recebia todos os artistas. Havia parques, teatro, circos. Nessa época eu até fiz uma música para o circo.
AVS – E você tinha que idade quando fez essa música?
Valcir – Devia ter uns 25 anos. Foi quando as pessoas começaram e reconhecer meu talento para fazer poesias e botar música. Depois, estudei na Campesina e na Euterpe Friburguense. E lá em Olaria era uma coisa muito gostosa e até hoje é.
AVS – Você morou praticamente a vida inteira lá.
Valcir – Morei a vida inteira lá. Namorei, casei e continuo morando em Olaria. E fiz muitas amizades. Lá eu não conheci preconceito, morava em uma vila em que todos eram brancos, só eu era escuro. E todo mundo se gostava, todo mundo conversava. Só vim a saber de preconceito depois. Até hoje, para conseguir esse trabalho desse CD—Samba de raiz—, corri atrás das pessoas e consegui vários patrocínios. Diziam que seria difícil, que eu não conseguiria. E eu pensava: tudo bem, mas eu vou tentar. E saí, pedindo a um e a outro, pois pedir, Deus deixou, dá quem quiser.
AVS – Você tem outro CD?
Valcir – Tenho o primeiro CD, Amor ardente. Mas antes de fazer esse primeiro CD, participei de quatro LPs. Tinha havido um concurso de marchinhas de Carnaval, do Odir de Souza, o Godô. Ele tinha um programa na Rádio Friburgo: Seresteiros em Revista. No final do ano, ele fazia o concurso para o Carnaval, com três modalidades, marcha rancho, samba e marcha viva.
AVS – Isso é em que ano?
Valcir – Lá para 1973, 74. Ele veio a falecer, se não me engano, em 2000. Até um ano antes, havia o concurso. Ele procurava os talentos da terra e foi numa dessas que eu apareci. Também participei de um festival de rock, com um conjunto, Face oculta.
AVS – E quando foi esse festival de rock?
Valcir – Foi nos anos 1980, quando cresceu o rock brasileiro. Mas antes foi com o Godô, que eu participei. Eu trabalhava na fábrica ...
AVS – Qual fábrica?
Valcir – Fábrica Sinimbu, desde 1973. Trabalhava no almoxarifado e ali fazia versos e sambas. E ia sempre na seção de uma menina chamada Fânia Charret e ela me ajudava, dava opinião sobre minhas marchinhas, meus sambas. Ela andou fazendo muitas marchinhas comigo, mas depois ela se casou e deixou isso de lado. E eu continuei. Eu fazia a música e a letra e, para completar, eu ia lá na seção dela e cantava um pedacinho. Ela tinha uma memória incrível, às vezes eu perdia a melodia e ela, não. Não tínhamos gravador e ela guardava tudo de cabeça.
AVS – E quanto tempo você ficou nessa fábrica?
Valcir – Uns 15 anos.
AVS – E o cinema?
Valcir – Era à noite, eu trabalhava no cinema e na fábrica. Saía da fábrica às 17h, ia em casa jantar e à noite ia para o cinema, a sessão era às 20h. No sábado havia sessões às 18h e às 20h e, no domingo, às 14h, 16h, 18h e 20h.
AVS – Quantos anos, no total, você trabalhou no cinema?
Valcir – Uns 25 anos. Só deixei de trabalhar em cinema quando os cinemas fecharam, nos anos 1990. Não me lembro qual foi o último a fechar. Trabalhei no Cinema São Clemente, no Marabá, no São José, e no São Luís, na esquina da Avenida Alberto Braune, onde hoje existe uma sapataria, próximo a um chaveiro. Este era do mesmo dono do Cinema São José e do cinema São Clemente.
AVS – Então, você cresceu ...
Valcir – ... vendo filmes.
AVS – E guardou algum filme de que você tenha gostado mais?
Valcir – Muito filmes. Os filmes brasileiros, aquelas chanchadas com Oscarito, Ankito, Grande Otelo, Cil Farney, Eliana ... vi muitos desses filmes.
AVS – E era desses que você gostava mais.
Valcir – Ah! Gostava muito! Depois veio o Mazzaropi ... ficava uma multidão no cinema para ver o Mazzaropi. Trabalhei como faxineiro, depois como lanterninha, depois na portaria, na bilheteria e, por último, como operador. Em minha carteira [de trabalho] há o registro como operador. Mas aqueles anos iniciais perdi todos [para efeito de previdência social]. Era para estar aposentado, mas não estou.
AVS – Você, então, trabalhou nos cinemas e na Fábrica Sinimbu.
Valcir – Antes da Sinimbu, trabalhei em cerâmicas. Havia várias lá em Olaria. Eu era embalador, depois fui ser forneiro—enchia o forno. Também enchia as formas de gesso com massa para fazer as peças, fui retocador. Só não consegui acertar na pintura, naqueles desenhos. E durante todo esse tempo trabalhava também nos cinemas.
AVS – Em 1973, você deixou as cerâmicas e foi para a Sinimbu?
Valcir – É, porque as cerâmicas foram acabando. Tive outros empregos, trabalhei como servente de pedreiro, ali na Rua Nossa Senhora de Fátima. De manhã cedo, eu acordava todo o pessoal daquela rua cantando, querendo imitar o Agnaldo Timóteo ... e aí diziam: “Já chegou, negão?”. E o pessoal nunca reclamou. No dia em que eu não cantasse, perguntavam se eu estava passando mal. Isso, antes de trabalhar na fábrica. Até como cozinheiro já trabalhei. Trabalhei em motel, fui porteiro, vigia e também recepcionista ... conheci muitas figuras boas da cidade (risos) ... eu vi e não vi nada.
AVS – Vamos voltar para a música, como as coisas continuaram, depois de você ter casado e tido os cinco filhos?
Valcir – Nos anos 1990, reuni os amigos, Paulo Mendonça, voz e compositor, Jorge Josué, guitarrista e baixista, Alécio, baterista, Pingo, também baterista, e formamos uma banda que era a Face Oculta. Era nossa face desconhecida, a outra era a de trabalhadores da fábrica. Era uma banda de rock. Era o auge do rock naquela passagem dos anos 1980 para 1990. Eles me chamaram porque eu tinha essa facilidade muito grande para pedir patrocínios, chegar, conversar. Eles eram um pouco acanhados. É aquele negócio: sim ou não, me bater, a pessoa não vai. Recebi muitos “não”, mas também muitos “sim”. Participamos de festivais em Bom Jardim, Cordeiro, Cantagalo, Carmo.
AVS – E a feira, como você foi parar lá?
Valcir – Foi com o Carlinhos, que veio de Ponta Grossa, no Paraná. Ele fazia linguiças defumadas, me viu trabalhando na feira e perguntou se eu queria trabalhar com ele e me pagaria mais um pouco. Eu trabalhava para um pessoal na feira que me dava o que sobrava. Eu gostava porque tinha meus filhos em casa, nunca fui de fazer cerimônia. A feira era um bico porque já tinha meu serviço fixo na fábrica. E o Carlinhos passou a me dar um dinheiro para eu vender as linguiças. Ele me viu trabalhando e disse: “Você leva jeito para se comunicar com o povo”. E ele me pagava por dia.
AVS – O que você mais fazia, então, era a publicidade, não é?
Valcir – Isso, eu fazia a publicidade. Como eu era muito conhecido, ali em Olaria, todo mundo chegava. Oferecia provas. Teve um lance engraçado uma vez que passou uma menina bonita e eu falei: “Essa é boa demais! Essa é muito boa!” Aí chegou o namorado dela e perguntou: “Quem é muito boa?”. E eu respondi: “A linguiça defumada que eu vendo. Olha aqui, prova só um pedaço e vê se não é boa.” Estava todo mundo ligado no que iria acontecer. Era um cara forte. Insisti para o cara provar enquanto via todo mundo me olhando. O cara provou e ainda comprou meio quilo de linguiças defumadas. Depois teve um que gritou: “Aí, negão, você quase ficou branco.” Na feira tinha uns lances muitos engraçados. É um lugar em que realmente você se solta, fala.
AVS – Você contou uma porção de histórias e a sua vida conta um pedaço da história desta cidade. Há mais alguma coisa que você gostaria de dizer?
Valcir – Eu quero que meu trabalho apareça. Não é só por fazer sucesso, mas mostrar meu trabalho para que as pessoas reconheçam o valor.
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