Com a música, onde ela estiver

quarta-feira, 31 de dezembro de 1969
por Jornal A Voz da Serra
Com a música, onde ela estiver
Com a música, onde ela estiver

Maurício Siaines
A cantora e compositora friburguense JoziLucka poderia ter sua vida representada pela adaptação do trecho do hino do Grêmio, de Porto Alegre, do compositor Lupicínio Rodrigues (1914-1974), que diz “com o Grêmio, onde o Grêmio estiver”. Saiu de Nova Friburgo aos 17 anos, em 1987, praticamente direto para uma vivência musical no Rio de Janeiro, com experiências de trocas culturais variadas. É de Lupicínio a primeira música cantada em público por Jozi, ainda na quinta série do Colégio Estadual Jamil El-Jaick. Esse encontro da futura compositora da serra fluminense com o seu colega gaúcho pode ser símbolo do que vem sendo uma carreira musical baseada na busca do diálogo entre diferentes, entre diferentes gerações.
Jozi Lucka deu entrevista a A VOZ DA SERRA, na última terça-feira, 11 de setembro, na sede da Associação Friburguense de Imprensa (AFI), no centro da cidade, ocasião em que contou histórias de sua vida e fez reflexões sobre música e cultura de um modo geral. Abaixo, trechos da conversa.

A VOZ DA SERRA – Fale um pouco a respeito dos encontros entre as produções musicais de várias gerações que hoje parece acontecer, como sugere o musical Old& Gold, recentemente representado em Nova Friburgo.
Jozi Lucka – É curiosa essa coisa da música no tempo. Quando eu era jovem, criança mesmo, ouvia muita música fora do meu tempo, eram canções que eu ouvia em casa, que minha mãe gostava de cantar. E o que acontecia naqueles meados da década de 1980 era o rock nacional e eu ouvia Lupicínio Rodrigues, Noel Rosa (1910-1937). Minha referência musical era de duas décadas antes, da adolescência da minha mãe. E eu comecei a gostar dessas músicas, a cantar essas músicas.
Estava pensando nesses anos da minha: quando comecei, e era muito novinha, cantava uma música brasileira muito voltada para essas raízes nacionais; cantoras de rádio, da Rádio Nacional, Elizeth [Cardoso], Dalva [de Oliveira]. Comecei a cantar na época de colégio ... costumo dizer que começo a contar minha carreira a partir de 1987, quando fiz um primeiro show, em que escolhi repertório, escolhi uma banda. Foi aqui no Centro de Arte e costumo contar minha carreira a partir desse dia, 15 de outubro de 1987. Já vai fazer 25 anos. 
Quando comecei a cantar, me manifestar em relação ao gosto musical, em escola, minha primeira experiência foi em uma aula de educação artística, na quinta série do Colégio Estadual Jamil El-Jaick, em que a professora propôs que os alunos trouxessem algum trabalho artístico, um desenho, ou cantar, ou fazer alguma peça. Escolhi cantar uma canção de Lupicínio Rodrigues, “Vingança”. Tinha 11 anos, era muito tímida e quis cantar virada para o quadro [de costas para a turma]. O que importou mesmo foi a minha voz. Tenho amigos até hoje, que estudaram comigo naquela época,que lembram: a professora estava chorando e perguntava como eu conhecia aquela música. Tenho uma recordação muito bonita disso. Era uma pré-disposição minha, eu já gostava de música, já gostava daquele repertório. E a música veio tomando conta da minha vida. Na verdade eu queria ser atriz. Tinha uma inclinação artística mas achava que tinha a ver com teatro, com televisão. Até que descobri que tinha talento para cantar, era afinada. E havia movimento na escola, meninos tocando violão—e eu também queria aprender a tocar violão. Um de meus primeiros professores de violão disse, em uma aula, que eu cantava muito bem, disse que eu tinha uma voz bonita e que eu deveria desenvolver, estudar. Achei aquilo curioso.

AVS – E como foi a carreira depois de se definir pela música?
Jozi Lucka –Aquele show no Centro de Arte, em 1987, tinha um repertório mais voltado para a música popular brasileira: cantava Milton Nascimento, Gilberto Gil, Chico Buarque, várias canções que faziam sucesso na época—bons tempos em que Chico Buarque fazia sucesso! Foi uma época muito frutífera. Tive muita sorte como cantora por ouvir no rádio Joyce, Fátima Guedes. Havia a Rádio Roquete Pinto e a Rádio Nacional FM, que tocavam tudo isso. Imagina o que era ter essa escola, essa nata de talentos, para uma pessoa que estava começando a carreira musical. Foi uma época muito boa essa, quando fui para o Rio, aos 17 anos. Logo depois do show no Centro de Arte, em 3 de novembro, já estava no Rio. Coincidiu de ir terminar os estudos lá, morando na casa de uma tia. A partir daí, o mundo musical tomou conta da minha vida e eu não tomei mais conta de nada, as coisas foram acontecendo.

AVS – E que lugar teve Nova Friburgo em sua vida?
Jozi Lucka – Nasci e vivi aqui até os 17 anos e sempre gostei muito desta cidade, sempre tive um carinho muito especial. Depois que fui para o Rio, vinha para cá com alguma frequência visitar minha família. E era muito bom quando vinha e pegava a serra, aquilo me dava um aconchego, uma volta ao lar. Ao mesmo tempo, estar no Rio, hoje, é muito importante para mim, culturalmente falando. Porque minhas referências culturais são de fora de Friburgo. É claro que jamais vou me desvincular, nasci aqui, gosto daqui, tenho minha casa aqui, divido-me entre o mar e a serra. Mas acho que Friburgo precisa de uma revolução cultural. Em todos os sentidos, em todas as áreas. 
Penso que o artista, quando não tem referências fora, acaba se autocentrando e achando que aquilo que ele faz é o suficiente, está pronto. E na verdade não é: o fazer artístico é mutante. Hoje, quando componho com parceiros de outros estados—que é o caso deste momento—tenho ali outras referências culturais, de outras relações culturais e pessoais. E quando se fica muito restrito—e aqui em Friburgo temos essa questão geográfica de se estar muito fechado—, a pessoa acaba se autocentrando e não crescendo. Acho que a grande revolução é essa, abrir o leque de possibilidades. Não estou falando de ecletismo, mas dessa busca de referências também fora do lugar. Isto faz o artista crescer, acrescentando aquilo a seu trabalho. Não só ao seu trabalho, mas à sua vivência pessoal. Acho importante todo artista viajar e buscar referências.

AVS – Você fala nisso e faz pensar no seguinte: em outra época, Caetano Veloso e Gilberto Gil, baianos, foram viver no Rio, depois de um período de exílio em Londres; Chico Buarque é de São Paulo, passou parte da juventude na Itália, depois foi para o Rio; a Luhli, que hoje mora em Lumiar, nasceu e cresceu no Rio, ficou conhecida através de suas músicas gravadas pelo Ney Matogrosso, e também teve uma vida cheia de mudanças, chegando a percorrer parte do Brasil em uma Kombi, fazendo apresentações e vendendo discos em vinil por onde passava. Aí está a questão das trocas a que você se refere, não é?
Jozi Lucka – Exatamente, [sem as trocas] você não tem referências externas. Vivi em Friburgo minha infância e adolescência: já tenho isso, já trago isso dentro de mim. Mas tenho que verificar até que ponto isto é o suficiente. Pode ser que para muita gente seja, mas para mim não é, estou sempre buscando outras coisas para acrescentar ao meu trabalho, para mesclar, para fazer mesmo uma massa, buscar uma identidade diferente. As pessoas perguntam se faço MPB, se faço pop, se faço rock e até hoje não sei dizer. Faço música. Em uma vitrine de CDs em uma loja, onde estaria classificada? Tenho alguns CDs em livrarias no Rio [expostos como música] pop, em outro lugares,como MPB ...acho muito engraçado como as pessoas me veem, como veem o meu trabalho.

AVS – Você tem um CD no Japão, não é? Como foi esse caminho até lá?
Jozi Lucka – Tenho. Assim que saí de Friburgo e fui para o Rio, comecei a trabalhar direto com música e tive muitas experiências curiosas. Conheci pessoas que me indicaram a outras que foram abrindo portas. A maior vivência desse tipo foi com Roberto Menescal. Participei de várias produções feitas por ele durante quase dez anos. E nesse trabalho, em que estávamos direto juntos, ele resolveu montar uma banda e fazer um trabalho instrumental com músicas dele e outras que gostava. Na época, eu fazia parte desse grupo e a gente gravava. 

AVS – E isso quando foi?
Jozi Lucka – Início dos anos 1990. Ele lançou um disco, um álbum chamado “Ditos e feitos”. Era a mesma formação: Fernando Merino no Piano, Rubinho na bateria, Jacaré no baixo, Roberto Menescal na guitarra e eu e outra cantora. Aí gravamos esse CD, em que fiz duas participações solo em duas faixas, e fiz vocal em todo ele. A partir desse CD, lançado aqui e no Japão, surgiu uma oportunidade, uma coisa muito curiosa. Um produtor queria gravar um CD com algumas canções japonesas, com versões em português, com ritmo de bossa nova, para ser lançado lá no Japão. Nessa negociação, primeiramente, iríamos gravar fora, depois ele, o produtor, resolveu vir para cá e gravamos. Foi um CD de canções inéditas japonesas, com ritmo de bossa nova, arranjos do Menescal e do J. Morais, músicos maravilhosos, com letras em português. Foi muito bom fazer esse CD, foi muito divertido e ele foi lançado lá, em 1992. Foi uma experiência muito curiosa porque foi uma salada e no final ficou bonito, deu certo. 
Quando aprendi as canções, elas estavam em japonês. Tinha que absorver dali a melodia ... as letras em português ainda não tinham chegado e ficávamos ali com a melodia cantada em japonês.

AVS – E é interessante lembrar que Roberto Menescal é um músico do tempo da bossa nova. Então, a troca a que você se refere também acontece entre diferentes gerações, não é?
Jozi Lucka – Acho que tive muita sorte em minha carreira por chegar no Rio e cair dentro dessa situação. Ali, tive uma experiência muito grande em estúdio, em gravação, em toda essa parte técnica, que muito me atrai. Nos dois CDs autorais que lancei, o “Intacta”, em 2002, e este “Pra te pegar”, em 2012, a produção técnica é minha. Foi muito enriquecedora essa experiência com o Menescal.

AVS – Fale mais desses seus caminhos de formação.
Jozi Lucka – Eu era autodidata, mas depois, em 2007, me formei em música aqui [em Nova Friburgo], na Candido Mendes. Sempre tive essa vontade de fazer uma faculdade. Já tinha tentado cinema, filosofia e, por mais que esses cursos tivessem a ver, acabaram não acontecendo. Aí surgiu essa faculdade de música aqui e, por coincidência, eu estava aqui, e foi muito bom. Assim, também sou educadora musical. Fui professora durante uma época, fiz concurso público para o estado. E foi uma experiência fantástica lidar com adolescentes em uma sala de aula. Tenho muito carinho por todas aquelas criaturas que passaram pela minha vida.

AVS – No mundo de hoje, em que quase tudo é comercializado ou comercializável, os artistas da música vivem uma nova realidade. Fale um pouco a esse respeito.
Jozi Lucka – A gente tem que colocar o artista dentro do seu tempo e isso vai refletir no seu trabalho, no seu comportamento. Acho que essa questão de mercado, hoje em dia, é muito curiosa. Hoje, o que toca e está aí na mídia é tudo muito fácil, feito de uma forma para ser produzida, para ser consumida, tudo tem que ser rápido. Existem coisas de valor aí? Talvez, sim. A pessoa que tem uma visão e quer alguma coisa além vai conseguir porque, hoje, com todas as possibilidades tecnológicas, não é preciso ficar ouvindo só uma rádio, com aqueles sucessos que já vêm prontos. Pode-se pesquisar e encontrar uma rádio de jazz, de blues, de coisas interessantes, de pessoas que estão fazendo um trabalho paralelo ao mercado que está aí.

AVS – Esta conversa pode não ter fim, mas a página do jornal tem. Por isto, para concluir, que palpite você daria aos jovens que procuram se inserir no mundo da música?
Jozi Lucka –O palpite é que, se a pessoa gosta da música, deve fazer música, sem se importar com o que alguém possa dizer, que não dá dinheiro, que é difícil. Sempre há alguém falando contra. Mas se quer ser músico, vá ser músico, vá estudar. Há possibilidade de se fazer cursos muito legais, com pessoas muito boas dando aulas, universidades no Brasil e no exterior. Faça música porque, se não, você vai ser um músico frustrado e aí vai ficar doente, vai viver uma vida triste ... e não é para isso que a gente está aqui, não é?

Vingança
Lupicínio Rodrigues

Eu gostei tanto,
Tanto quando me contaram
Que lhe encontraram
Bebendo e chorando
Na mesa de um bar,
E que quando os amigos do peito
Por mim perguntaram
Um soluço cortou sua voz,
Não lhe deixou falar.
Eu gostei tanto,
Tanto, quando me contaram
Que tive mesmo de fazer esforço
Pra ninguém notar.
O remorso talvez seja a causa
Do seu desespero
Ela deve estar bem consciente
Do que praticou,
Me fazer passar tanta vergonha
Com um companheiro
E a vergonha
É a herança maior que meu pai me deixou;
Mas, enquanto houver força em meu peito
Eu não quero mais nada
Só vingança, vingança, vingança
Aos santos clamar
Ela há de rolar como as pedras
Que rolam na estrada
Sem ter nunca um cantinho de seu
Pra poder descansar.

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