Igreja
Certa vez, li um poema de Adélia Prado, chamado “Sítio”, e fui capturado por uma das mais poéticas descrições do que é a Igreja. Assim diz a Adélia:
Igreja é o melhor lugar.
Lá o gado de Deus para pra beber água,
rela um no outro os chifres
e espevita seus cheiros que eu reconheço e gosto,
a modo de um cachorro.
É minha raça, estou
em casa como no meu quarto.
Igreja é a casamata de nós.
Tudo lá fica seguro e doce,
Tudo é ombro a ombro buscando a porta estreita. (...)
Lá sou corajoso
e canto com meu lábio rachado:
glória no mais alto dos céus (...).
Igreja é o povo de Deus em relação: em relação consigo mesmo e em relação com Deus. Como bem nos recorda a Confissão de Augsburgo (documento básico da confessionalidade luterana) em seu Art. 7, a Igreja são aquelas pessoas que foram alcançadas pelo amor gracioso de Deus, formando a comunidade onde o Evangelho de Cristo é anunciado de forma autêntica e os Sacramentos são ministrados corretamente. Não se trata, a priori, de uma Instituição.
A Igreja é algo maior: São pecadores/as arrependidos/as que se reúnem para celebrar suas alegrias, tristezas e buscam na Palavra de Deus orientação para a sua vida. Infelizmente, na pós-modernidade, temos perdido o caráter relacional do ser Igreja. Estamos, aos poucos, transferindo a fé para um âmbito altamente individualista. Assim, diz Rubem Alves: “(...) A Igreja é basicamente uma comunidade de pessoas que conspiram, que respiram juntos em uma mesma coisa, em um mesmo desejo [...]. É justamente isso que sinto que está ausente na igreja”.
Ninguém pode ser Igreja sozinho, como bem nos recorda a passagem de Mt 18.20: “Porque, onde dois ou três estão juntos em meu nome, eu estou ali com eles”. Ser Igreja é sinônimo de comunhão, onde todas as partes têm sua importância, como nos relata Paulo ao usar a metáfora do corpo e suas diversas partes (I Co 12. 12ss). O que une e origina a Igreja é o próprio Cristo. O Jesus terrestre não fundou uma organização chamada ‘igreja’. Ela surgiu depois da crucificação e ressurreição de Jesus, fruto do Espírito Santo, cuja vinda no dia de Pentecostes motivou a pregação dos apóstolos e os primeiros batismos (At 2).
A igreja cristã primitiva testemunhou sua espiritualidade de forma atuante na sociedade. É esse exemplo que queremos seguir. Para que a Igreja seja protagonista neste mundo, ela precisa ser contextual, voltada às dores e sofrimentos do mundo. Vale recordar que a Igreja não é do mundo (Jo 17.14), mas está no mundo (Jo 17.15). Por isso, ela precisa valorizar, motivar, desafiar e apoiar toda iniciativa que promova vida digna. Nesse sentido, um dos maiores perigos que a Igreja corre é fechar-se em fundamentalismos tornando-os sua “verdade”. Seguindo essa postura, a Igreja corre o risco de se distanciar cada vez mais da realidade, da ciência, das questões éticas do momento, da política e da própria realidade do seu povo, tornando o Evangelho estéril e insosso.
_______________________________________________________Coluna de 11/8:
Somente a Fé
A experiência de fé é fundamentalmente uma experiência afetiva. Aprendemos a conhecer Deus nos abraços e carinhos que recebemos de nossos pais e entes queridos desde a mais tenra idade, acrescida da premissa de que esta fé precisa ser alimentada constantemente. Por isso, gosto da definição do teólogo Paul Tillich: “Fé é estar possuído por aquilo que nos toca incondicionalmente”. Seguindo essa lógica, a fé é um ato da pessoa como um todo. Ele se realiza no centro da vida pessoal e todos os elementos que desta participam. Fé é o ato mais íntimo e global do espírito humano.
Crer, segundo o Catecismo Luterano, significa “temer e amar a Deus e confiar nele acima de todas as coisas”. Segundo Lutero, a primeira, suprema e mais nobre obra é a fé em Cristo, pois é nesta obra que as outras obras precisam ser realizadas conscientemente.
Lutero relaciona fé com a palavra latina ‘cedere’. Fé é ceder. É ceder e não resistir diante de Deus. Fé é não se curvar sobre si mesmo e suas próprias qualidades e potencialidades, mas sujeitar-se à Palavra de Deus. Assim, fé é confiança total em todos os momentos da vida. Somente pela fé, Deus apresenta as suas promessas às pessoas. Pela fé, a pessoa recebe e já pode viver, em esperança, um pouco daquilo que ainda não tem plenamente, por isso o autor da Carta aos Hebreus define a fé como a certeza de receber as coisas que se esperam e a convicção de fatos que não veem.
A fé é despertada através da pregação, ensino e evangelização da palavra como reação ao amor de Deus. A fé não é obra humana. Ela é dádiva do Espírito Santo. Porém, a fé não é apenas um conjunto doutrinário altamente abstrato. A fé também é movimento, é ação. A fé nunca está “pronta”, no sentido de acabada. O teólogo Rudolf Bultmann já ponderava dizendo que “a decisão da fé não é algo assumido de uma vez por todas, mas sim algo que deve se comprovar sempre nas situações concretas, sendo assumida de novo. O crer não representa um apreender, mas um ter sido apreendido e, portanto, um permanente estar a caminho entre o ‘ainda não’ e o ‘mesmo assim já’, um permanente perseguir o alvo”.
Nas poéticas palavras de Lutero: “A vida cristã não é ser piedoso, mas tornar-se piedoso; não é ser saudável, mas tornar-se saudável; sobretudo não um ser, mas um vir a ser; não ficar parado, mas um exercício. Nós ainda não o somos, mas o seremos. Ainda não foi feito e ainda não aconteceu, mas está a caminho. Nem tudo brilha, mas as coisas estão melhorando”.
Admitir que a fé nunca está ‘pronta’, nos faz reconhecer também nossa realidade pecadora que sofre ataques por dúvidas e tentações. A dúvida que está relacionada com a fé pode ser chamada de dúvida existencial. Quando a dúvida se faz presente, não se deveria entendê-la como rejeição da fé; pois ela é um elemento sem o qual nenhum ato de fé é concebível. Dúvida existencial e fé são os pólos que determinam o estado interior da pessoa possuída pelo incondicional. A dúvida é uma confirmação da experiência de fé.
____________________________________Coluna de 4/8:
Somente a Escritura
O impulso para a Reforma Protestante do século XVI veio do ‘re-descobrimento’ da Bíblia. Lutero era professor de Bíblia e descobriu nela o quanto a igreja havia se afastado do evangelho. Com a Bíblia em mãos, enfrentou papa e imperador, exigindo correção na igreja e no Estado. Admitia como único critério da verdade a Bíblia. Jogou o sola scriptura (somente a Escritura) contra a igreja de seu tempo, denunciando os abusos que se haviam instalado.
A Sagrada Escritura é a orientação básica para a Igreja, a mais alta instância normativa em assuntos de fé e conduta, pois ela contém a Palavra de Deus. Digo, ‘contém’, pois, a Bíblia não é um livro caído do céu escrito pessoalmente por Deus. Ela foi escrita por mãos humanas com a inspiração divina.
O texto bíblico, assim, tem um lugar histórico, onde foi vivido; um lugar teológico, o que Deus deseja comunicar; e um lugar próprio, a forma pessoal como cada pessoa experimenta a Escritura. A partir disso, toda e qualquer interpretação Bíblica tem corpo, cor, classe social, gênero, idade, etc.
Ler a Bíblia é como descascar cebolas: temos que tirar ‘cascas’, o que pode irritar um pouco os olhos. Porém, para temperar e dar sabor à comida é necessário passar por isso. Há muitas formas de acessar um texto bíblico. Por isso, é de suma importância a pesquisa e estudo aprofundado de um texto bíblico – o que os teólogos chamam de exegese. Para que, ao ler a Bíblia, não estejamos justificando nossa própria ideologia ou teologia, mas buscando aterrissar a mensagem bíblica para os dias atuais de forma coerente. Lutero já alertava para os abusos supostamente justificados pela Bíblia quando afirmou que “qualquer ensinamento que não se enquadre nas Escrituras deve ser rejeitado, mesmo que faça chover milagres todos os dias”.
Para Lutero, a Bíblia possui pontos altos e baixos, partes de maior e outras de menor densidade evangélica. Por isso, erra quem a lê de modo “linear”, sem critério avaliativo, sem percepção para o essencial. Que critério usar?
O critério da interpretação bíblica deverá ser a pergunta pelo “o que promove a Cristo”, ou seja, o Reformador colocou ao lado do sola scriptura o solus Christus (somente Cristo). Nas palavras de Lutero: “Retire Cristo das Escrituras e não sobrará nada”. Com este critério, qualquer pessoa pode interpretar a Bíblia, visto que a sua mensagem central é clara: Jesus Cristo. Todo texto bíblico à luz de Cristo é simultaneamente expressão de juízo e graça, lei e evangelho. Tal postura representa uma mudança no processo interpretativo: A Bíblia interpreta-se a si mesma, não somos nós quem a interpretamos. Ao contrário, é ela quem nos interpreta.
O que distingue a Bíblia não é sua origem, mas sim o seu conteúdo. Ela é, por excelência, o testemunho da história do amor de Deus para com o seu povo que culmina com o nascimento, vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. A revelação de Deus é uma pessoa: Jesus Cristo, não um mero texto bíblico. É Jesus Cristo quem faz a Bíblia ser sagrada e não vice-versa. Tal premissa deveria nos livrar de qualquer ‘bibliolatria’ (adoração ao livro) e banir qualquer leitura fundamentalista-literalista da Bíblia. Portanto, a interpretação luterana da Bíblia será uma interpretação humilde, disposta a realmente auscultar e aprender, nunca pronta em definitivo, sempre a caminho.
__________________________________Coluna de 28/7:
O Deus de Lutero: transformação
A família de Martim Lutero pertencia à burguesia ascendente onde imperava uma educação rigorosa. A piedade na casa paterna não destoava da piedade reinante: submissão à Igreja e crítica aos maus costumes do âmbito secular. O mundo dos “demônios” era altamente temido. Acreditava-se que a fome, a peste e a guerra provinham do Maligno. A imagem que o jovem Lutero tinha de Deus era representada pelo Cristo juiz, assentado sobre o arco-íris com espada de dois gumes na boca e olhos flamejantes.
Lutero tornou-se monge a fim de salvar sua alma, havia nele um forte sentimento de buscar um correto relacionamento com esse Deus temível. Ele desejava estar seguro de sua situação para com Deus, de conquistar a boa vontade de Deus. Por trás de tal desejo, estava o temor do julgamento do Deus severo. Nem mesmo o sacramento da penitência lhe oferecia alguma ajuda. Lutero, em seu entendimento, não conseguia fazer o bem, nem cumprir os mandamentos de Deus. Logo, sentia-se parte do grupo dos eternamente perdidos.
No estudo das Escrituras Sagradas e, em particular, da Epístola aos Romanos, o Reformador vai encontrar libertação. O lema “O justo viverá por fé”, ajudou Lutero a distinguir entre a lei e o evangelho. A justiça de Deus, revelada no evangelho, não podia ser a mesma que era revelada na lei. Lutero desconstrói, mediante esta constatação, a imagem do Deus que pune os pecadores com ira e desvenda uma nova maneira de conhecer Deus. A imagem que Martim Lutero tem de Deus passa por transformação. Após descobrir a justificação por graça e fé,o Deus tirano se torna gracioso!
Nesse sentido, a imagem de Cristo também sofre mudanças. Ele não é mais um “juiz severo”, mas um Salvador, cuja obra é perdoar os pecadores arrependidos e livrá-los de seus pecados. Agora tudo é dádiva, Deus não trata as pessoas de maneira impessoal, avaliando seu devido castigo ou recompensa, mas sua relação é direta e pessoal, como um pai que não leva em consideração o que os filhos merecem, mas o que eles necessitam para o seu bem.
O Deus gracioso não se encontra distante, fora e além do mundo, e que nada tem a ver com o mundo como o experimentamos no dia-a-dia. A Reforma Protestante vai resgatar a imagem de um Deus gracioso que aceita o ser humano por graça e fé. Um Deus que se mostra no reverso daquilo que é, revelando-se na cruz do Filho, no seu sofrimento.
Lutero não consegue imaginar vida cristã sem sofrimento, para ele, o sofrimento comprova ou até mesmo “valida” o ser cristão, pois justamente na ignomínia da cruz, Cristo se compadece do ser humano sofredor. O auxílio de Deus fica oculto aos humanos de maneira que estes pensam ter sido abandonados por Deus quando Ele mais próximo está. Nas palavras de Lutero: “Os olhos [de Deus] só olham para as profundezas e não para as alturas [...] Pois como ele é o Supremo e nada há acima dele, ele não pode olhar acima de si, também não pode olhar para os lados, pois ninguém lhe é igual. Necessariamente tem que olhar para dentro de si e para abaixo de si, e quanto mais fundo alguém estiver abaixo dele, tanto melhor ele o verá”.
Lutero é categórico: Só reconhecemos Deus na cruz, nos sofrimentos de Cristo e nos sofrimentos dos cristãos. Esse sofrimento não significa submissão e passividade, mas nos motiva a ter uma postura de engajamento e protesto frente aos sistemas que “crucificam” os seres humanos no mundo pós-moderno. Descobrir um Deus misericordioso é um convite para a transformação da nossa maneira de viver no mundo.
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