Depois do disco Carioca, lançado em 2006, o cantor e compositor Chico Buarque submergiu cinco anos preparando seu novo trabalho, singelamente chamado Chico e exibido ao público em julho. Avesso às entrevistas, o mestre da MPB utilizou a internet para divulgar o novo projeto; detalhe: ele mesmo se autoentrevistou para o vídeo de divulgação. As cenas são os bastidores das gravações, que contam com 10 faixas inéditas: “Querido Diário”, “Rubato”, “Essa Pequena”, “Tipo um Baião”, “Se eu Soubesse”, “Sem você nº 2”, “Sou Eu”, “Nina”, “Barafunda” e “Sinhá”.
Na mesma semana de divulgação, Chico fez um pocket-show ao vivo por 30 minutos pela internet ao lado de João Bosco, registrando uma audiência de 147 mil acessos em seu site www.chicobastidores.com.br. Como era de se esperar, a transmissão também ficou entre os assuntos mais comentados do Twitter. Mas foi também por meio da aproximação com a internet e, consequentemente, com o público, que Chico descobriu que muita gente não gosta dele e que boa parte da nova geração estaria questionando uma supervalorização do seu trabalho. Em algumas comunidades virtuais, percebeu que havia piadas por conta da sonoridade que encontrou para finalizar a canção “Querido Diário”. Ele faz uma rima inusitada com “fazer sacrifício”, utilizando “amar uma mulher sem orifício”. Pronto, tratando-se de Chico, gerou um acalorado debate nas páginas do microblog acerca da sua importância.
Entretanto, mesmo retirando o “orifício” da mulher, é inegável entre os entendedores e grandes críticos musicais que Chico ainda se mostra dono de um talento indiscutível, o que pode ser observado na música “Essa Pequena”: “Temo que não dure muito a nossa novela / Mas estou feliz com ela... / Sinto que ainda vou penar com essa pequena, mas / O blues já valeu a pena.” E também na canção “Barafunda”: “Era Aurora / Não, era Amélia... / Foi na Penha / Não, foi na Glória / Gravei na memória, / Mas perdi a senha.”
O velho Chico
Nos bastidores das filmagens, o cantor diz não se considerar um bom instrumentista: “Queria ter nas mãos a habilidade que tenho nos pés”. Modéstias à parte, aos 67 anos de idade, o mestre descortina momentos intimistas ao longo das 10 faixas, expondo certa nostalgia e, quem sabe, certa melancolia no contexto total da obra. Ele trata nas letras um romance terminado em “Sem Você 2”, enquanto a valsa “Nina” aponta para o que poderia ser um próximo romance. Também foi grande a especulação por parte da imprensa carioca acerca da música “Se eu Soubesse”, por causa da participação especial da cantora Thaís Gulin, que teria tido um affair com o cantor.
Em entrevista divulgada à imprensa, Chico não deu certeza se iria realizar uma turnê para divulgar o novo álbum, o que também motivou uma onda de protestos, todos respondidos de maneira enfática pelo seu assessor: “Coisas de Chico...”
O momento
“No momento, pretendo desligar-me da música por um tempinho. Mas, na verdade, tenho também minhas parcerias a quem estou devendo letras, várias músicas ficaram no meio do caminho.”
“É evidente que estou satisfeito com o disco, se não, não entregaria. É o melhor que eu soube fazer. Não tenho a menor ideia do que as pessoas vão pensar, nem saberia compará-los com outros discos. Pra mim, no momento, é o melhor, mas sempre quando termina é o melhor.”
“Eu literalmente meto os pés pelas mãos. O ideal pra mim seria isso, seria poder ser um melhor instrumentista, confiar mais em minhas mãos e gravar ‘à vera’, violão e voz junto com os músicos. Como se fosse um show ao vivo.”
“Acho que fiz a valsa, depois o blues, depois o samba, mas com um intervalo de um, dois ou três meses, entre uma música e outra. Esse intervalo é o tempo que eu estava fazendo cada música, que eu estava compondo e recompondo, desfazendo e descompondo, até chegar a forma definitiva. Melhor que isso, impossível!”
“Quando você vai escrever um livro, você não parte do nada. Parte de um vazio total. É tão diferente a criação de letra da literatura, já disse isso várias vezes. Só faço as letras, porque existe a música, né?”
“Gosto de pensar em música como um jogo, um brinquedo. Eu me divirto fazendo.”
Conheça um pouco mais do álbum
QUERIDO DIÁRIO
Senti ternura pelo personagem na letra. Nela está Chico falando de um de seus muitos Chicos. Ouso comparar com Fernando Pessoa e seus heterônimos. É o poeta que conquistou a erudição do olhar, da escrita e da música, que, aliás, exprime a elevação do personagem por suaves execuções de cordas.
RUBATO
No melhor estilo “um cantinho, um violão”.
ESSA PEQUENA
Frases curtas e concisas desse leve blues nos transportam a um amor fugaz e terno. Versos como “meu cabelo é cinza e o dela cor de abóbora”, nos faz sentir de bem com a vida e dá até vontade de namorar.
TIPO UM BAIÃO
Ousadia de quem dobra e doma as palavras altamente arriscadas. Da expressão vulgar e desgastada “tipo assim”, o compositor parte para obter razoável resultado, alternando seu típico cantar-declamar com puladinhos dos ritmos populares. Tudo amalgamado por elementos comuns, a fogueira, os abadás, a ladeira.
SE EU SOUBESSE
É uma valsa que nos remete a situações em que, mesmo sabendo que não nos faz bem tal amor, a gente insiste e se engana, mas ama. O dueto entre Chico e Thais Gulin é bastante harmonioso.
SEM VOCÊ 2
Um suspiro. Chico é assim. O último respirar do amor que se foi. A dor dita com poesia, maestria, aquela singular de quem não vê (ou vê) mais sentido depois do término do compartilhar, dividir. É quase um grito, mas daquele dito em silêncio, com a voz do coração.
SOU EU
Sambinha elegante de letra malandra, parceria com Ivan Lins, tem a participação ilustre de Wilson das Neves. Aliás, a voz grave do carioca roubou a música, que soa como prima-pobre de “Sem Compromisso”, gravada por Chico em 2007.
NINA
É sinal de que ele, mais uma vez, conseguiu detectar o que é ser mulher. Mas, agora, uma mulher moderna, que vive um relacionamento à distância tendo o computador como instrumento de interação com o amado. Já a imaginação serve como fonte de desejo e prazer.
BARAFUNDA
É um samba irresistível que harmoniza letra e música de forma intimista. Tudo numa simplicidade que a torna instigante do início ao fim. A canção mistura lapsos de memória do narrador com grandes paixões do compositor: mulheres, futebol e Carnaval.
SINHÁ
No violão dedilhado, a parceria com João Bosco, que não só assina, mas também toca, lembra um ritual de senzala, reproduzindo na voz e na percussão as palmas e o bater dos pés dos escravos. O negro jura que não cobiçou o corpo de Sinhá e, por isso, não merece o tronco.
Crítica: Chico continua essencial
Mais uma vez, as composições de Chico Buarque continuam mostrando que são o ponto forte do seu trabalho. Merecem todo o respeito por parte da cultura nacional por manter o mesmo tom e ritmo, a mesma magia e swing do que tem de melhor na música popular brasileira. As melodias transitam por diversos caminhos e as harmonias, segundo o próprio cantor, estão mais racionais e maduras. Nada e nenhuma palavra foi jogada ao vento, mesmo o tal “orifício” que é retirado da mulher. O diálogo em relação ao tempo, que Chico descortina ao longo do álbum, é uma conversa franca de quem já conquistou um espaço que extrapola o aceito pela cultura nacional. É assim em “Essa Pequena”, em que canta, com ironia e leveza, sobre o relacionamento com uma moça bem mais jovem que ele. Ou em Rubato, uma música que precisa ser escutada com urgência, antes que seja roubada por outro compositor, uma observação extremamente importante, já que a questão dos direitos autorais com a internet ainda sofre algumas fissuras cotidianas. No final de tudo, a solidez e estabilidade das suas composições fazem de Chico Buarque um uma rota de fuga, um porto seguro para o que temos de melhor qualidade no cenário musical. Trata-se, sem sombra de dúvida, de mais uma obra maravilhosa, que será escutada e eternizada por muitas gerações.
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