‘Causos’

quarta-feira, 02 de junho de 2010
por Jornal A Voz da Serra

Lúcio Flavo Gomes da Silva

o atender a um convite do amigo Walter Thuller, acabei por me tornar – vejam só – um contador de casos da novel TV Luau. Muitos vividos ou presenciados por mim e outros contados por amigos. Nesta minha nova profissão, fui procurado por algumas pessoas que gostariam que eu contasse passagens por elas vivenciadas.

Na maioria dos casos, o ‘causo’ é por demais longo e não se adapta ao tempo que tenho na TV para tal. Um desses casos foi me trazido pela escritora Yedda Pereira Santos para quem, passo a palavra

 

BICICLETA E MEDICINA

É interessante olharmos a crônica das cidades, para nos surpreendermos, muitas vezes, com fatos realmente dignos de registro.

Aqui em Nova Friburgo, lá pela década de 60, era comum se encontrar pela noite, o colunista social, Luiz Pinel Neto, com seu cachecol e indefectível piteira, a coletar dados para sua coluna do jornal A Voz da Serra. Rapaz inteligente, dado a leituras pouco convencionais e bastante agradável no trato. E sobre ele é que se registra um caso bastante antológico:

Estava sendo realizado em São Paulo, um grande congresso sobre cardiologia, reunindo sumidades do mundo inteiro e, não de sabe porque razão, um dos maiores nomes do evento, o mexicano Cabrera, deu com seus costados por Nova Friburgo, hospedando-se no saudoso Sans Souci. Quando a classe médica local descobriu o fato, delegou uma comissão para, imediatamente, render as homenagens da cidade a tão ilustre visitante, convidando-o para proferir uma palestra no Centro de Arte, a anteceder um coquetel de boas-vindas que seria no também saudoso Clube dos 50.

O Centro de Arte na ocasião era dirigido pelo Ed das Mercês Ferreira, e este caso foi testemunhado por ele, que tinha prazer em comentá-lo, dado a total irreverência do fato.

À noite, na hora marcada, o Centro de Arte começou a receber selecionada plateia para o memorável evento e, qual não foi a surpresa do Ed, quando após receber membros mais influentes da classe médica friburguense que lotou a plateia, viu chegar Pinel, disposto a assistir à palestra. Dizia Ed que tentara dissuadi-lo, falando do pouco interesse que devia despertar o nível técnico da reunião, mas nada adiantou. “Nunca é demais aprender alguma coisa”, disse o colunista, adentrando o recinto.

A princípio tudo transcorreu conforme o previsto, com a oratória, seguida de pausas para os aplausos, isto até o final, quando o então papa da cardiologia do mundo, teve a ideia de propor a concordância do auditório às suas palavras: “Ustedes concuerdam?”

E uma mãozinha se levantou em meio ao auditório, seguida de um sonoro aparte: “Eu não concordo!”.

Quem, em meio àqueles médicos de uma cidade interiorana, teria tido coragem para contradizer tão ilustre personagem? Pensou Ed. E se surpreendeu, ainda mais, quando a figura que se levantou no auditório para ilustrar sua atrevida oposição, nem médico era, outrossim – o Pinel.

A plateia ao redor se incumbiu de fazê-lo sentar, novamente, antes que pudesse fazer mais alguma bobagem, e um dos organizadores do evento apressou-se em se apresentar no palco, para justificar a presença de pessoas alheias ao assunto, vista a reunião se realizar em local público, aproveitando para convidar os presentes para o coquetel no Clube dos 50.

O incidente teria terminado ali, não fosse o Pinel ter se dirigido ao 50 para participar também do coquetel e o dr. Cabrera, não o tivesse reconhecido de imediato, tão logo adentrou o recinto, e o interpelado sobre que bases se apoiava para discordar de suas palavras.

Com a mais absoluta traquilidade de um filósofo, Pinel expôs sua tese: “Eu tenho um irmão que é dono de uma oficina de bicicletas, e quando uma peça estraga, ele a substitui por uma nova, ou por outra ainda em funcionamento...”

“Mas falamos de corpos humanos e não de máquinas”, argumentou o renomado cardiologista, mas as pessoas que o acompanhavam já tinham desviado o Pinel para outro lado e justificado, de novo, para o ilustre convidado, da impossibilidade de seleção de presenças em um ato público.

MORAL DA HISTÓRIA: Poucos anos depois, em dezembro de 1967, o dr. Christian Bernard, fez o seu primeiro transplante de coração e, lá no México, um renomado dr Cabrera deve ter se lembrado de uma figura contraditória que tentou lhe mostrar o caminho, mas foi inteiramente incompreendida por todos.

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