Laryssa Frezze
As cortinas esvoaçariam, leves e brancas, pendendo da janela entreaberta. E voariam lentas por breves momentos, obedecendo aos comandos do vento. Repetiriam isso muitas vezes, feito um ritual que se grava na memória. E não descansariam, não, pois que era delas a importante incumbência de anunciar o que vinha. E vinha chuva.
A chuva tem dessas coisas: às vezes chega devagar e só a percebemos quando sentimos o úmido do cabelo ou uma gota travessa que mira a queda bem na ponta do nariz. Às vezes, no entanto, gosta de pompa. Gosta de anunciar sua chegada aos poucos—e quando chega, de fato, faz disso uma coisa estrondosa! Feito um nobre que vai dar uma festa e primeiro faz correr rumor do acontecimento. O rumor cresce—porque é assim que funciona—e logo todos só falam disso. Compram-se vestidos, desmarcam-se compromissos e faz-se de tudo para se ter a certeza de não faltar à tal festa. E quando chega a data, que ansiedade! Tudo deve sair como planejado e a festa deve ser exatamente como todos esperam que seja: memorável.
Se a chuva fosse o tal nobre, minhas cortinas seriam os seus mensageiros, encarregados de fazer correr boato de sua chegada. Mas, de fato, não tenho cortinas e não há nada que moldure minha janela, que está fechada—muito embora do lado de lá, os rumores são os de tempestade. Há os sonoros estrondos e o vento, tão forte que, por certo, faz dobrar as árvores—e canta. Canções que só o vento sabe.
Vem água.
E às quatro da manhã, quando nada há para os que dormitam, a não ser a própria penumbra da madrugada, tudo aquilo que é celeste (como bem previ) despencou em água. Foi coisa tão sonora como o nascimento de mil estrelas. Talvez o mundo estivesse chegando ao fim.
E eu fechei os olhos—porque se o mundo fosse acabar às quatro da manhã era melhor morrer dormindo. E também há aqueles de nós que precisam trabalhar aos sábados, bem cedo, logo pela manhã. Sendo eu mesma um dos membros dessa categoria, tratei de juntar meus cílios e desejar que lá pelas sete a chuva tenha dado uma trégua (esquecera o guarda-chuva na casa de outrem e, caso a tempestade continuasse, teria de enfrenta-la em pêlo mesmo, por duas longas horas de comutação).
Ora, nada feito! Seis e trinta e cinco da manhã e ainda parecia que o céu resolvera dar de chorar todas as suas mágoas (de todos os seus bilhões de anos) de uma só vez. E, enquanto levantava, sonsa e inchada, tentava angariar em pensamentos todo e qualquer pertence meu à prova d’água e muni-me o melhor que pude na minha falta de guarda-chuva contra o exército de gotas. Já enchia o peito de coragem e girava a chave na fechadura quando notei um súbito aquietar do ambiente. Era uma trégua. A chuva se havia cansado e o melhor que eu tinha a fazer era apressar a caminhada e galgar o máximo do caminho antes que voltasse—o que poderia acontecer a qualquer momento.
Fui-me andando, então, encapotada, encarando aquela enormidade infinda de cinza no céu e pensando que dias assim não são fundamentalmente dias de trabalho. De fato, deveria haver uma lei que dissesse que, quando dia alcança uma certa quantidade de cinza em sua luminosidade, é proibido ser produtivo e o dever do cidadão é o de recostar-se em uma poltrona e ler um bom livro. Naquele momento, o que eu queria mesmo era estar na casa da minha avó e comer bolo de chocolate—o qual fora previamente guardado no forno, caso algum neto chegasse de surpresa. Pegaria um cobertor peludo de lã e me estatelaria no sofá para uma soneca, ou para assistir a horas de programação televisiva sem sentido, somente pelo puro prazer de nada fazer.
Mas a essa hora, eu já estava quase às portas do trem, que chamava (assim como a dura realidade) a cruzar as suas portas. Cruzei e cheguei ao trabalho. Por quatro horas lá estive, cumprindo zelosamente o contrato e, quando saí, era já tempo de voltar para casa—mas me faltou dinheiro para o trem. Aí andei apressada em busca de um banco e por ruas cada vez mais estreitas e quase-sem-saída. Encontrei. Não só o banco, mas também um lugarzinho alaranjado de cuja parede pendia uma plaquinha em que se lia “Villa de Vó – comidinhas” e logo abaixo vinha o desenho de uma simpática velhinha.
O lugar misturava em suas paredes tecidos coloridos com estampas de flor, cartas emolduradas feito quadros, bengalas e velhos óculos de grau. Aproximei-me do balcão (e sorria tanto!) para perguntar o que era um machiatto—um café com um pouquinho de leite. E um breviatto?—um expresso. Decidi-me por um chocolate quente e fui sentar numa das bonitas mesinhas de madeira para observar que nenhuma das mulheres que me atendiam teria idade para ser minha avó.
O chocolate veio docinho e eu o saboreei devagar, enquanto esboçava esse texto. Saí de lá preenchida de gratidão. Não por ter visitado a casa de alguma avó, no fim das contas, mas pela trégua que me fora ofertada e pelo pouquinho do mágico acaso que encontrei no meu dia.
lara_frezze@hotmail.com
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